A sociedade dos ecrãs

O neuropsiquiatra francês Boris Cyrulnik esteve em Portugal para fazer uma conferência na “Noite das Ideias”, iniciativa da Embaixada de França e do Instituto Francês, na Fundação Calouste Gulbenkian, e defendeu que uma criança que cresce a olhar para ecrãs não consegue desenvolver empatia.

Efectivamente, os ecrãs impedem os jovens de hoje de desenvolver empatia – e as sociedades, deste modo, tornam-se “brutais”. Neste sentido, Boris Cyrulnik defendeu que “a nossa capacidade de resistência à adversidade – a chamada resiliência – não está inscrita nos genes. Não nascemos com uma determinada predisposição, antes somos moldados pelo ambiente (social, familiar) e é isso que nos torna mais ou menos resilientes”. Somos fruto das circunstâncias e de uma evolução de experiências, de erros, de crescimento, de aprimoração moral da nossa irracionalidade e identidade.

A resiliência é uma construção. Num ambiente de segurança, o cérebro de alguém que sofreu um trauma é capaz de se regenerar. É, segundo o neuropsiquiatra, “um fenómeno de desenvolvimento e nós desenvolvemo-nos o tempo todo, a nível biológico, psicológico, afectivo, social”. Assim, as crianças afectadas pelo stress materno, por exemplo, “chegam ao mundo com uma alteração cognitiva pela situação de precariedade social da mãe”. Está tudo ligado. A essência fundamental das coisas e dos fenómenos obedece às leis implacáveis (positiva ou negativamente) da Natureza. Somos todos fruto do acaso, da impossibilidade. A nossa vida é uma dádiva, um jackpot, uma graça que deve ser imortalizada através do nosso impacto nos outros.

Boris Cyrulnik tinha sete anos, quando perdeu os pais, levados pelos nazis para Auschwitz, onde morreram. Só aos dez anos é que foi entregue a uma família que o criou. Depois disso, as tentativas que fez para falar da sua situação depararam-se com um muro de indiferença. Boris percebeu que não valia a pena insistir em contar a sua história, mas foi também esta experiência que o fez perceber que queria ser psiquiatra.

Por um lado, do ponto de vista científico, quando chegam à adolescência, as raparigas, que têm uma biologia mais estável, “têm um avanço neuropsicológico de cerca de dois anos relativamente aos rapazes. Não só falam melhor, como são mais estáveis emocionalmente e já terminaram a sua fadiga de crescimento”, aponta o neuropsiquiatra. A respeito deste pequeno desvio cultural e biológico, aponta: “há aí [nessa invisibilidade] um grande determinismo social. Mas penso que isso vai desaparecer em dez anos”. Dentro de todo este (in)determinismo humano e biológico, há certas tendências que não podemos ignorar e que devemos ter em conta para conseguir compreender cada vez mais e melhor o mundo e as suas leis sobrenaturais e complexas.

Por outro lado, o domínio masculino no espaço público está indubitavelmente ligado à força física e à violência. Com efeito, Boris Cyrulnik vai mais longe. “A violência foi um factor adaptativo em todas as culturas. Muitos sociólogos dizem que é pela violência que a sociedade se constitui. Se os homens não fossem violentos, a espécie humana teria desaparecido”. Foi um dos alicerces da civilização, esta força repulsiva, este promotor de negativismo, impulsionou um desenvolvimento atroz de mentalidades e de perspectivas, permitindo a credibilidade do radicalismo subjacente a este apontamento.

A força e a violência eram, portanto, essenciais e isso fazia com que os homens fossem vistos como heróis. Esta violência adaptativa não faz sentido nas actuais sociedades ocidentais como a europeia, por exemplo, mas continua a fazer sentido em países em guerra. A diferença é, segundo ele, clara e demonstrativa. “A violência é destruição num contexto de paz mas é construção social num contexto de guerra”. É importante estarmos abertos a estas duas leituras, a fim de conseguir perceber a história da humanidade, de onde viemos e, sobretudo, seguindo as linhas de uma evolução que obedece a tendências, para onde iremos.

O problema fundamental está formalizado, “quando as crianças são criadas com ecrãs, são privadas da interacção, das palavras, do piscar de olhos, dos sorrisos; com um ecrã não há rituais de interacção”. Por isso, defende a necessidade de se desenvolver uma “pedagogia da empatia”, que deve começar nas escolas, para explicar que “não nos podemos permitir tudo”. É necessária, portanto, uma reformulação de mentalidades, do sistema educativo, de forma a conseguir colmatar esta tendência que, se for negligenciada, poderá ferir a nossa essência enquanto seres que precisam, necessariamente, uns dos outros para chegar mais além.

Desta forma, “uma pessoa nunca pode ser reduzida ao seu trauma”. Nós, seres humanos, dotadas de uma compaixão que pode mudar o mundo, conseguirmos colocar-nos no lugar do outro – é isso a empatia e também, segundo Cyrulnik, a base da moralidade – ajuda a perceber que nem tudo é possível, que temos de nos elevar enquanto seres pensantes e críticos, rumo ao apanágio mais belo da nossa civilização: um universo onde reina a simplicidade, a comunicação, a partilha e o amor.

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