A arte e o significado da vida

A partir do nascimento, somos necessariamente suspensos em teias de significados criadas por nós mesmos. E é aí que permanecemos por toda a vida: as teias simbólicas complexificando-se cada vez mais. Isto quer dizer que somos seres tanto biológicos quanto simbólicos e a imagem não é minha, mas do antropólogo Clifford Gertz.

Inicialmente “apenas” um aparato biológico, o indivíduo da espécie humana deve sua sobrevivência à inserção em uma cultura: aprende a identificar padrões (de voz, de formas como rostos, de alternância claro-escuro); compartilha linguagem rudimentar (choro como sinal de fome ou frio, por exemplo); identifica valores como “sim” e “não”, ou seja, intromete-se as “regras” do viver: visões de mundo, modos de vida etc. Importante dizer que a cultura é algo extremamente complexo. Assim, estar em uma mesma cultura não implica em grupos

homogêneos de indivíduos, como bem sabemos.

No contacto com a sociedade e suas instituições, temos várias oportunidades de dar significado à nossa existência, ou seja, de trilharmos o caminho da vida. Os campos religioso, escolar/acadêmico, de parentesco, científico e do trabalho, o mercado, por exemplo, põem à nossa disposição inúmeras possibilidades.

Cabe notar: sempre que falamos de cultura, dizemos também de exclusão: “nossa cultura é essa, não aquela”; “é assim que se comporta”; “estes são os papéis sociais de gênero, de idade, de raça”.

Trago para a presente reflexão Jean-Luc Godard que, em Je Vous Salue, Sarajevo (1993), assevera: “Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoyevski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção.”

Sim, há um campo de nossa existência que torna fluidas as regras: a arte. Com “tornar fluidas as regras”, quero dizer que a arte aponta caminhos de liberdade, de questionamento, de quebra dos paradigmas – apresenta formas inusitadas de significação. Não são poucos os exemplos de apropriação das artes pelo mercado e pelo Estado. No Brasil contemporâneo não há vontade de se admitir a existência do “funk carioca”, ligando-se automaticamente aquela linguagem artística à promiscuidade, ao tráfico de drogas, à “desordem”. Mercado e Estado (notadamente por meio das escolas) se apropriam do ritmo “batidão”, atrelam a ele “letras mais comportadas”, alçam cantores e cantoras ao “sucesso” e tapam os olhos ao grito por liberdade e igualdade de direitos.

E é por isso que buscamos a arte para dar significados (outros) às nossas vidas. Uma prática que desafia a Filosofia a conceituá-la é uma prática que questiona, liberta, empodera e torna o “estar no mundo” algo, no mínimo, mais intrigante.

Procuro em minhas memórias algum exemplo de política de estado que tenha conferido à arte o seu verdadeiro papel, anteriormente exposto. E confesso que não encontro exemplo. Há o ensino de arte com objetivos lúdicos, profissionais, educativos; mas não conheço ação que tenha levado às últimas consequências a noção de liberdade que torna fluidas as regras – o Estado não joga contra si.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Português do Brasil
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