A Memória é um lugar estranho

Eu lembro-me”, “eu faço” e “eu sou” não são afirmações tão independentes como se possa pensar numa primeira leitura. Se o nosso cérebro não conseguir integrar as nossas lembranças com a nossa própria pessoa, com os estímulos sensoriais que constantemente recebemos do exterior, com a nossa capacidade motora e com a nossa vida de relação, muitas das suas funções superiores ficam comprometidas.

Sendo a memória um sistema de processamento extremamente eficaz e sensível que codifica a nova informação, a armazena e a recupera (quando necessário), podemos dizer que se torna indispensável para a criação do nosso “eu” (gerando, por exemplo, uma narrativa interna temporal e cronológica autobiográfica) e para fornecer orientação no espaço-tempo, em relação a nós próprios e a terceiros.

Em que é que isto se traduz, na prática? Desde que nascemos, estamos sempre a aprender, com a novidade e a repetição. Estamos expostos a uma variedade quase ilimitada de estímulos externos e, à medida que as conexões neuronais se vão desenvolvendo e tornando mais complexas durante a infância, vamos adquirindo a noção de constância do Eu, da separação entre Eu e os Outros, de inúmeras funções motoras, sendo porventura a mais complexa a linguagem.

A memória codifica tudo. O que significa codificar? Transformar estímulos físicos e químicos externos (ao cérebro) em novos padrões de conexões neuronais, quer isoladamente (codificação individual de estímulos auditivos, visuais, tácteis) ou integrada (informação espacial, geográfica, verbal, cronológica).

O processamento e o armazenamento implicam a existência de “filtros” que permitam a separação entre estímulos supérfluos e necessários, a informação que necessitamos para o dia a dia e a informação a armazenar de forma permanente.

No primeiro caso, entram em jogo o foco, a atenção e a repetição, para construir memórias de curto prazo (memória processual ou de trabalho, com armazenamento limitado e duração de minutos), codificando, sobretudo, informações e actividades automáticas do quotidiano.

No segundo caso, a consolidação e reconsolidação da informação está ligada ao hipocampo, amígdala, corpos estriados e mamilares, estruturas cerebrais em estreita ligação com o sistema límbico e hipotálamo. Sendo um sistema responsável por emoções, comportamento e aprendizagem com ligação a estruturas vitais e reguladoras do organismo (sistema nervoso autónomo e sistema endócrino), vai influenciar em muito a formação e recuperação da memória de longo prazo.

Resumindo, a memória de longo prazo (cuja duração é potencialmente ilimitada) está associada a emoções (“positivas” ou “negativas”) e mesmo estados orgânicos. A recordação ou evocação de memórias pode ser inibida ou estimulada consciente ou inconscientemente.

Quase todos nós temos recordações expressivas de certos momentos da nossa infância (memórias que recuperamos muitas vezes ao longo da vida). No entanto, podemos ser vítimas de percepções falsas (visão, audição…) que foram guardadas como informação verdadeira, ou de informação com um peso emocional tão grande que pode ter sido subvertida, quer na consolidação, quer na recuperação.

Quer isto dizer que as nossas recordações normalmente não são completamente exactas. As memórias foram armazenadas com o filtro do nosso “eu”, na altura do acontecimento. Esse filtro é também condicionado pela idade, stress ou presença de condições físicas ou psíquicas.

Para terminar, o cérebro e a memória têm também um “horror ao vazio”. Em circunstâncias em que as memórias deixam de poder ser evocadas (não há evidência de que sejam destruídas), o cérebro produz novos dados sem qualquer coerência com a informação em falta (confabulação).

A memória, uma de muitas funções cognitivas superiores, é um lugar estranho, porque acaba por se estender do cérebro a todo o organismo, estabelecendo um sistema de coerência do próprio que quando é perdido se torna o pior dos labirintos: uma realidade alternativa da qual o sujeito deixou de fazer parte.

[box type=”info” align=”alignleft” class=”” width=””]Pequena nota cinematográfica: um exemplo bem construído sobre processos mentais e a conservação de memórias – O Despertar da Mente (Eternal Sunshine of the Spotless Mind), 2004 – https://www.imdb.com/title/tt0338013/[/box]

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