A Identidade Plasmada no Sotaque

Certa vez ouvi alguém dizer (tenho pena de não me lembrar quem) que a identidade de um povo também se vê pela forma como imprime o seu sotaque materno à língua estrangeira que secundariamente fala. Concordei.

Quando ouvimos um italiano falar inglês, por mais correcto que seja na utilização da gramática, por melhor que empregue as expressões idiomáticas, sabemos que é italiano. Não consegue disfarçar. Dos franceses, a mesma coisa, não abandonam o seu sotaque francês ao falar inglês. O mesmo se passa com aquele cântico inconfundível dos espanhóis na sua singular forma de falar a língua universal. Se os ouvimos falar inglês, sabemos de onde vêm; não conseguem dissimular aquele compasso que se impõe à língua.

No caso espanhol, em muito pode ter contribuído a ditadura franquista que fechou as portas a tudo o que era estrangeiro – menos à ditadura – e, enquanto, por um lado, abolia qualquer manifestação cultural vinda do exterior, enaltecia aquilo que se poderia considerar a tradição espanhola. Esses vestígios continuam bem visíveis, aliás nem sei se se poderão chamar vestígios: não é um aspecto que pontue a cultura espanhola aqui e ali, é antes a própria cultura. Não é um pormenor, é algo basilar na estrutura cultural e intelectual de nuestros hermanos. Os filmes podem vir de Hollywood e até de Bollywood, mas dobram-se para a língua espanhola. Um Jack Nicholson sem a sua voz? Meio Jack Nicholson. Um James Bond em espanhol? Caricato. Señorita M? Como fica a experiência cinematográfica sem a voz de Russel Crowe, de Anthony Hopkins? Quem já ligou a televisão em Espanha e teve a sorte de apanhar um tal filme, sabe bem que a voz do George Clooney não é aquela! Sabem lá o que estão a perder! Bom, os senhores da publicidade devem saber, que a mantiveram no anúncio da Nespresso, de certo almejando assegurar um maior número de vendas. Para nós, que não nos habituámos assim, fica a estranheza de ouvir vozes fora do corpo a que pertencem.

Sintonizar o rádio em Espanha e ouvir vozes a cantar noutros idiomas é uma sorte. A maioria é música espanhola, música deles. Uma cúpula onde o estrangeiro nem sempre consegue penetrar. Se calhar o extremo oposto do que se queixavam cá os artistas, invocando a falta de atenção que a rádio dá à música nacional. Ainda? Tenho ouvido alguma música portuguesa na rádio, porventura ainda não suficiente.  Bom, mas estamos a falar de sotaques, sobre música na rádio será outra página.

Parecem-me ser estes os dois portões de entrada democrática da língua estrangeira na nossa formação: através de filmes que começamos a «ouvir» quando já somos capazes de ler as legendas e de músicas que povoam o universo sonoro, que nos dão a conhecer a métrica ainda antes de sabermos as palavras que lá encaixam.

Aqui ao lado é diferente. A sonoridade da língua de Cervantes é preponderante e sobranceira na formação dos indivíduos. Agora menos, com todos os canais internacionais, mas os vestígios continuam a ser ainda mais que vestígios. Quando percebemos um sotaque, adivinhamos uma história, tanto quanto a melodia impressa na dicção imponha a lembrança da origem daquele interlocutor. Internamente sabemos o mesmo: um açoriano que carrega a insularidade na conversa, um homem do norte que traz o ponto cardeal na voz. O sotaque é riqueza. O sotaque é casa. É cartão de visita que não carece de muitas apresentações.

Muitos lamentam o facto de espanhóis e franceses (snobs e xenófobos com tradição) nem sequer se esforçarem para chegar a um entendimento com o estrangeiro, ao contrário do português que, na sua hospitalidade tão louvada, se contorce a várias penas para bem receber e saber o que o estrangeiro precisa. Oiço muitas vezes dizer que, quando lá vamos, aos seus países, não se esforçam nada por nos entender, uns antipáticos… Considero que não se trata apenas de uma questão de carácter, trata-se de um reconhecimento profundo e diáfano da língua como identidade.

Somos um povo hospitaleiro e quem daqui sai sabe reconhecer a diferença, mas, por vezes, fica pouco clara a distinção entre a tal hospitalidade, tão bem aproveitada pelo nosso Turismo, e um certo provincianismo, um certo deslumbramento perante o que vem de fora. Um acolhimento sem discriminação, como se estrangeiro fosse, por si só, apanágio de qualidade e de comparativos de superioridade.

Talvez esta hospitalidade se revele também na expressão linguística, na nossa, portuguesa, reconhecida capacidade de aprender e falar línguas, sustentada por uma dicção e amplitude de sons com as competências certas. Fico na dúvida se vale mais esta capacidade de reproduzir a sonoridade de qualquer língua ou se valeria mais uma portuguesa forma de falar inglês. Talvez nos perdêssemos menos no meio de tanta hospitalidade. Estaríamos seguros pela matriz original.

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