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Violeta

Sim, violeta é nome de flor, mas esta Violeta, com uma maiúscula bonita e bem delineada, é pessoa de bem e única. As flores são belas, libertam um odor maravilhoso e delicioso, mas gente que tem nome de flor, é de um patamar superior.

Velhinha, com 82 anos, de lindíssimos olhos azuis, ficou viúva muito jovem e criou os filhos como pôde, com muito amor e uma enorme coragem. Mulher que é de luta, como esta tão brava senhora, não se deixa derrotar por armas mínimas.

Chegaram os netos e os bisnetos. Ela segue a sua vida, com uma lucidez ímpar e uma ironia de fazer passar vergonha aos ofendidos de hoje. São mais de oito décadas e uma experiência vasta nesta coisa de saber viver.

Viver num bairro tem as suas vantagens. Ou numa zona onde todos se conhecem há uma eternidade e onde, mesmo assim, há sempre gente nova que se aventura. Moro nesta zona há uns tempos e aqui o novo e o mais antigo fazem par com tudo.

Os bons dias ainda funcionam e há sempre um dedinho de conversa gratificante mesmo que o sorriso, sincero, seja de mero agradecimento pela simpatia do contacto. Viúvas e viúvos são seres com um potencial extraordinário.

Claro que os que têm cães acabam por se conhecer melhor, nos mil e um passeios que se fazem e foi assim que conhecia a D. Violeta, que mora mesmo à minha beira, mas que só a via à janela. Um dia estava a passear um cão baixinho, preto e parecia que o diálogo era bem interessante.

Quem passeia estes anjos de pelos sabe que o convívio é algo de muito salutar. O cão, com o nome de Blackie, era o parceiro de alguém que se revelou um verdadeiro prodígio. A senhora, é um poço de alegria e boa disposição e este fiel amigo foi o motor para a fazer sair de casa.

Claro que as palavras são como as cerejas e, num ápice, tudo se sabe destes seres de quatro patas que nunca abandonam os donos, que estão sempre prontos para a brincadeira e que amam, com um amor intenso, quem os cuida.

Fiquei a conhecer a esta vizinha de uma forma curiosa. Uma tão doce e querida senhora, de olhos profundos de mar e um sentido de humor refinado, de fazer corar os mais novos, que são ignorantes nestas artes de saber lidar com os outros.

Entre gatas, pássaros e o seu canito, as conversas versavam tanto e tão importantes temas como o convívio e a simpatia, valores tão simples, mas caídos em desuso. O Blackie fazia com que a sua dona saísse de casa e fosse vista por muitos, sobretudo os que, como ela, tinham quatro patas a fazer companhia.

As gatas já se foram, de velhice e o canito tornou-se apenas uma saudade forte. Estava doente e não havia como o curar. Mas, o que ele não sabe, ou talvez soubesse, é que curou a solidão da sua querida dona, durante os tão bons tempos que estiveram juntos.

Ciumento e maniento, era um cãovalheiro à espera das cadelas que passavam. Só lhe faltava o assobio e a frase: “És boa comó milho!” e o palito na boca. Esta era a sua faceta semi marialva-macho. Uma delícia.

Um dia apagou-se a sua chama e a D. Violeta, uma senhora encantadora e interessante, voltou a ficar sem parceiro para os seus passeios que lhe limpavam a cabeça e a alma. Todos sentimos a falta dele, mas eu sinto mais a falta dela, de me cruzar com esta tão bem-disposta senhora e soltar umas larachas para rir.

Mas o tempo tudo cura, ou engana. Ou tapa. Os gatos voltaram. Primeiro um, depois o outro e o sorriso e companhia reinam no seu estar. A cor de viver ganhou outros contornos e a D.ª Violeta rejuvenesceu com ardor. Não para e ainda bem que a genica e a vontade são suas parceiras.

Gosto desta senhora e todos os passeantes de cães sentem a sua falta, sinal de que faz parte dos nossos corações. Agora tem outro tom, um segredo que partilhou comigo e que não vou revelar. É generosa, altruísta e um coração de ouro.

Precisamos de ar, de respirar, de viver, de ser humanos, partilhar, confidenciar, de sermos, o mais importante, felizes, essa condição de parcas migalhas, mas que sabe tão bem. Se já gostava dela, conseguiu a proeza de se elevar até muito próximo dos anjos. São estes seres, tão puros, vestidos com capas invisíveis de singela humanidade, salpicadas com um pó especial de estrelas e rasto de céu muito azul, que provam a existência da paleta que oferece beijos e abraços com mestria, o verdadeiro amor.

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