Trinta Anos

(…) todos têm medo da morte, embora só nela se possam salvar da monstruosa ofensa que é a vida.

Se na definição de Prazer de Ler couberem as obras que lhe dão corpo, então, Trinta Anos, da austríaca Ingeborg Bachmann, tem presença garantida.

Não conhecia a autora, quando aproveitei a troca de livros da Biblioteca de São Domingos de Rana e, no canto onde deixamos um livro e trazemos para casa a esperança de uma leitura agradável, deixei A?s e ?s, A Lei de ? e uma colectânea de frases de ?? para trazer, entre outros, Trinta Anos.

(…) agarramo(-no)s firmemente a hábitos com medo de um modo de pensar sem tábuas de proibições e tábuas de mandamentos, com medo da liberdade. Os homens não amam a liberdade. Onde quer que ela tenha surgido, condenaram-se a si com ela.

Tenho na Europa Central (tal como na América do Sul, por razões opostas) a melhor geografia literária. Stefan Zweig, Hermann Hesse ou Thomas Bernhard marcam presença no panteão dos herdeiros de séculos sombrios. A escrita de Bachmann, com o pessimismo, as dúvidas angustiantes capazes de esticar a vida até ao limite e uma lucidez e clareza que me apaixonaram, forma mais um exemplo desta corrente. Nascida em 1926, Bachmann entrou na Literatura pela poesia no pós-guerra, no Grupo 47. Conseguiu congregar algo nem sempre comum nas artes: a popularidade com a qualidade marcada pela vertente autoral.

Trinta Anos reúne sete contos. Qual deles o melhor?

Então aconteceu. Um choque atingiu-o por dentro do cérebro; surgiu uma dor que o fez desistir, os pensamentos tornaram-se mais lentos, confusos, e saltou do baloiço. Tinha ultrapassado a sua capacidade de pensar, ou melhor, lá onde ele tinha estado ninguém podia pensar mais para além. (…) Pensou que tinha enlouquecido e agarrou-se desesperadamente ao seu livro. (…) Estava no limite.

Bachmann deixou-nos como escreveu, atravessando a fronteira que continha a ânsia pela compreensão do seu lugar no mundo: viciada em álcool e barbitúricos, sobrevivente ao conturbado relacionamento à distância com o poeta surrealista Paul Celan (as cartas trocadas entre eles foram recentemente publicadas em Portugal), à homossexualidade do compositor Hans Werner Henzel, com quem chegou a equacionar o casamento, ou ao adultério do escritor Max Frisch, foi perdendo a sensibilidade à dor. O seu corpo deteriorou-se com as queimaduras acumuladas pela cinza dos cigarros que ela deixara de sentir. Na noite de 25 de Setembro de 1973, um incêndio – pensa-se que devido a um cigarro – originado no colchão da cama do quarto onde estava hospedada, leva-a ao hospital. Os médicos, desconhecendo a sua extrema dependência, testemunharam a violenta reacção perante a falta dos comprimidos. A “intelectual brilhante” – nas palavras do prémio Nobel Heinrich Boll – morreu no hospital no dia 17 de Outubro desse ano

Da abertura do conto Tudo:

Quando nos sentamos como duas personagens petrificadas à mesa, ou quando à noite nos encontramos junto da porta da entrada porque nos lembrámos os dois ao mesmo tempo de a ir fechar, sinto a nossa tristeza como um arco que vai de uma ponta à outra do mundo – de Hanna a mim, portanto – e que nesse arco retesado está preparada uma seta, pronta a atingir o céu imóvel em pleno coração.

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