Admiro a cabine telefónica através de uma janela partida. Uma teia de vidro transforma a minha percepção; aquele símbolo do passado parece ainda mais triste e abandonado na noite escura, visto à distância. Entre nós, a fragilidade. O cérebro perdido quando olho para a cabine. Os pensamentos dispersos a correr para todo o lado, os olhos semicerrados porque estou a analisar algo que nem sequer sei o que é, mas que martela e martela e corre e corre. A imaginação rodopia para todo o lado. Vai para lugares que eu penso conhecer.
Oiço o som estridente da cabine.
Os pensamentos voltam ainda mais rápido. O cérebro é só meu de novo. Tudo quanto imaginei naqueles segundos já não consigo identificar. Tudo o que fazia sentido não faz mais. Só o ruído me prende a atenção. Só o ruído me devolveu a lucidez.
Oiço o som estridente da cabine, um som que é uma lembrança longínqua. Sobrancelhas coladas de espanto. O telefone tocava como se olhasse para mim, a pedir-me que atendesse. Eu, justamente eu. Nostalgia. À minha volta, a noite e a solidão. Não existe ninguém. Olho para o fim da rua, à procura do autocarro que nunca mais chegava. Nada. Saio de detrás daquele vidro partido da paragem, que eu tinha assumido como meu esconderijo do desconhecido, e aproximo-me. Levanto o auscultador.
Do outro lado, vozes antigas chegam como se um vinil tocasse. Barulhos que o digital não conhece, vozes que já não existem, vozes confusas que ficaram perdidas no novelo do tempo.
“Alô? Alô?” tento saber.
Urgência no tom. Chuva, interferência, não se percebe. Só se sente a urgência na voz desesperada, nas explicações cortadas que não conseguem ser entendidas, aceleradas e nervosas, palavras arrastadas. E depois, nada. O ascultador ainda mais colado à orelha, a querer entrar pelo ouvido para fazer algum sentido.
“Alô? Alô? Pode repetir?”
Como se fizesse alguma diferença. Nem chuva, nem intermitência, nem voz. Silêncio, só. Uma ausência de som que não era natural, que era errada e louca e perturbadora. Este era um silêncio que eu reconhecia algures no espírito, que fazia parte de mim e da minha história, mas que eu não sabia onde o encaixar. Nada durante um minuto. Desliguei. Arrepios. Uma sensação estranha no corpo. Como se tivesse ouvido um segredo perigoso ou visto um carinho tão íntimo que excluía um mundo inteiro. Fiquei ali, encostada à cabine, com medo de ir para além daquele som – ou daquele não-som, ex-som, assom.
Nada de autocarro. Que horas seriam? Olhei de novo para o telefone. Confusão. Parecia chamar-me, parecia ser algo importante. Aquele silêncio tenebroso parecia-me o fim de linha dos telefones antigos fora do lugar, muito tempo depois de refilarem com o seu “pi-pi-pi”, depois disso, depois, quando já só lhes resta acalmar-se. Um vazio como se do outro lado estivesse alguém muito sossegado, morto, uma presença só à espera de saber a nossa voz para nos assombrar.
Mas aí, lembrei-me.
A minha avó a arder em febre durante três dias. Eu muito pequena e com medo. Ela olhava-me e delirava, os olhos brilhantes, os cabelos encharcados do suor. “Desvia-te, filha! Quando o telefone tocar, desvia-te! Foge!” A minha avó a pedir para fazer um telefonema, a levantar-se lentamente e a apoiar-se nas paredes frias do corredor. A voz queimada dela, arrastada, o tom de aviso, as lágrimas e o suor misturados na cara brilhante. E antes de desligar o telefone, a avó a cair, os olhos baços e o corpo hirto. A morrer. E o telefone a abanar-se em câmara lenta, pendurado de um cabo como um enforcado. Uma voz familiar do outro lado, uma voz que não soube reconhecer. A minha voz de adulta.
Quando entendi, já era tarde. Só vi as luzes do autocarro a aproximar-se de mim.