Invariavelmente, ao abordar os impactos da imigração em qualquer país, um dos temas que sobressaem relacionam-se com a crença de que se inicia um processo de descaraterização cultural, como uma consequência da crescente diversidade.
Vídeos de imigrantes muçulmanos que celebram o Eid al-Fitr, festa que comemora o fim do mês do jejum no Islão (Ramadão) e que se juntam em espaços públicos, como o Martim Moniz, têm servido para alimentar esta crença, de que uma substituição cultural está em marcha.
Este tema, contudo, não é novo. No século XIX, os polacos católicos que imigravam para o que é hoje a Alemanha, eram vistos com desconfiança e como pessoas perigosas à espera de uma oportunidade para derrubar o protestantismo. A mesma desconfiança também foi partilhada por católicos, em França, contra os protestantes, e mais recentemente relativamente aos imigrantes muçulmanos, hindus ou sikhs.
Cultura(s)
Antes de prosseguirmos, torna-se necessário falarmos um pouco sobre o que é cultura, especialmente, tendo em conta o contexto português. É possível falar de uma cultura portuguesa ou da existência de diferentes culturas? Como se construiu essa cultura? Que elementos compõem essa(s) cultura(s)?
O termo cultura tem diferentes significados. Aplicado a pessoas, entre as diferentes definições possíveis conta-se alguém que possui um grau de conhecimento elevado[1] (pessoa de cultura), mas também elegância[2].
Nem os cientistas sociais, como os antropólogos ou sociólogos, parecem concordar numa definição única. No entanto, há algo no qual concordam em sentido lato: cultura remete padrões de comportamento, crenças, valores e conhecimentos partilhados por um grupo social, manifestando-se de distintas formas, como a língua ou modo de comunicar, os costumes, artes, e formas de organização social.
Vejamos exemplos. Embora se trate de um estilo musical amplamente conhecido, o fado cantado em Lisboa, caraterizado por ser boémio e popular, difere do fado de Coimbra, que se distingue pela influência da tradição académica e de serenatas.
Apesar de se tratar da mesma língua, o modo de se falar no norte de Portugal é diferente no do Alentejo, Madeira ou Açores. A nossa diversidade cultural manifesta-se, também, através dos diferentes tipos de construção entre as diferentes regiões, gastronomia, folclore e, até, em diversas festas religiosas pelas diferentes aldeias e povoações.
Entre as diferentes possibilidades de gentílicos que temos em Portugal, um deles remete para um povo, lusitanos, mas do qual não falamos a língua. Aliás, a nossa língua, é o produto de diferentes legados dos povos que por aqui se estabeleceram ou com quem nos relacionámos.
Os romanos trouxeram o latim, mas o topónimo Guimarães é de origem germânica. Quando, antes de sairmos à rua, dizemos: “Oxalá não chova”, recorremos a um arabismo, de entre cerca de 4000 existentes, que tem origem na expressão árabe Insha’Allah (Se Deus quiser). A influência muçulmana na nossa cultura vai além de palavras ou de algumas formas de organização frásica, mas também se manifesta na arquitetura, como os arcos em ferradura, nos instrumentos de navegação que nos foram extremamente úteis no período dos Descobrimentos, como o astrolábio, mas também herdamos algumas influências gastronómicas.
A cultura, portanto, não tem um caráter estático, mas é dinâmica, incorporando novas formas de pensamento e modos de vida, que alteram gradualmente as formas anteriores ou agregando essas novas influências. Exemplo disso, são os diferentes anglicismos que usamos diariamente até para nomear um mero espetáculo de humor, como um stand-up, o visionamento de séries por streaming ou a substituição do Pão por Deus pelo Halloween.
E a globalização?
A globalização tem servido para aproximar pessoas de um modo que seria impensável há um século atrás. Se uma pessoa, nos anos de 1940, quisesse ver um seu familiar que emigrou para o Brasil, demoraria cerca de um mês, que era o tempo que levava um vapor de Lisboa ao Rio de Janeiro, hoje é possível ver esse mesmo familiar sem esse inconveniente através de uma videochamada, ainda que esteja no outro lado do mundo.
Entre as diferentes manifestações da globalização, encontra-se a tendência a uma certa homogeneização entre as diferentes culturas (ainda que com possíveis resistências e tensões), mais concretamente, numa supremacia cultural ocidental, nomeadamente anglófona. Quando ligamos o rádio, na maioria das estações, a música é cantada em inglês, mesmo que o cantor seja português; não é expetável que, no período de Natal passe o Consoada, um qualquer filme de Bolliwood ou Nollywood, mas possivelmente algum produto norte-americano, como o “tradicional” Sozinho em Casa ou o Shrek.
Como se percebe pelo exemplo português, a cultura carateriza-se pelo seu dinamismo, substituindo ou agregando elementos que antes não comportava. Um português que tivesse vivido no século XVI, provavelmente teria alguma dificuldade inicial em nos conseguir compreender, porque até a língua soa de um modo diferente relativamente ao período no qual viveu.
A cultura portuguesa, tão adulada por movimentos de extrema-direita, é o produto da agregação de diferentes contribuições dos povos que por aqui se estabeleceram e integraram-se, e que mais faz lembrar os perfis de montanhas com diferentes camadas, marcas das eras geológicas representadas por diferentes linhas de sedimentos.
Os imigrantes não descaraterizam culturalmente Portugal, ou qualquer outro país. Se bem integrados, contribuem para a valorizar, tornando-a ainda mais rica. O que esses grupos de extrema-direita defendem não é a cultura portuguesa, mas uma idealização do que seria essa suposta cultura. Por se tratar de uma idealização, essa cultura só existe nas suas mentes, sem que deem conta de outras influências externas que a alteram e a fazem aproximar de outros padrões culturais.
[2] Moderno Dicionário da Língua Portuguesa.