Os pesadelos não acontecem só nos filmes. Foi o que pensei, quando a personagem principal era a pessoa que pensava que não era constituída de carne e osso e que era imbatível. Estava perante uma aventura digna de um Óscar. A princípio foi como ouvir a sinopse de um livro e pensar o porquê do vilão sair vitorioso. Existe aquela revolta durante o episódio que não dura mais de 45 minutos para ir puxando a atenção, gradualmente, dos que o admiram.
Cancro. Aquela palavra que ainda faz tremer e assusta quem a ouve. Cancro. A palavra que se pensa que nunca será dirigida a ninguém que amamos e queremos proteger. Cancro. Palavra cada vez mais usada para associar a doença-moda, a que será dominante nos tempos vindouros. Infelizmente, é para ficar.
Ao ouvir a palavra cancro, na sequência dos vários exames efectuados para a sua confirmação, a pessoa tende a ficar sem chão, sem tapete, sem pinga de sangue, sem respirar, sem sentir. O tempo parou e aquele nome que ouviu não é o seu. Deve ter havido algum lapso, uma troca de exames, um engano que rapidamente será desfeito. Acontece que é mesmo assim e que o nome mencionado é o seu e, automaticamente, pensa que o fim está para breve.
É uma vida que vai desaparecer e que não tem retorno. Hoje em dia, a prevenção permite que estas doenças sejam detectadas a tempo e que os tratamentos assegurem a continuidade da vida, apesar da qualidade da mesma ficar seriamente afectada. Existem técnicas de manutenção da vida que terão de ser tomadas a sério e seguidas à risca. Só assim o sucesso estará no caminho. Nem sempre se o consegue alcançar.
“Saio mais cedo do trabalho e os meus colegas ficam muito admirados, porque lhes digo que vou para casa ter com a minha mulher, porque ela precisa de mim. Quero estar mais tempo com ela e todo o tempo é pouco. Eles não entendem.”
Entre a aceitação e a rejeição, a linha é muito ténue. Será bem mais fácil virar as costas ao que se afigura complicado e doloroso. Tempo para pensar. Pode não ser favorável e a decisão deve ser tomada de imediato. É a vida que chama, o valor mais alto que existe e ainda há tanto por fazer. A pessoa não quer partir sem que o guião esteja todo escrito e revisto. Inicia-se a luta. Ninguém sabe o que vai acontecer. É sempre uma moeda com duas faces que se roda e não deve cair no chão.
A seguir vem mais um outro passo, importante e essencial, para o que se avizinha: a notícia tem que ser dada aos familiares e amigos. Alguém terá que ser o cuidador, um papel que não será de todo leve de carregar. Um lastro que se tornará cada vez mais pesado e que deixará marcas indeléveis. Uma dor perfurante na alma e uma enorme impotência que se acumula no corpo e no coração.
Ninguém está imune nem isento de ser atingido por esta doença. Qualquer órgão pode ser atingido por estas células desgovernadas que se lançam a uma velocidade vertiginosa pelos corpos escolhidos. A vigilância terá de ser contínua e a guarda nunca poderá ser aligeirada. As armas, improvisadas, terão várias funções e nunca serão dispensadas. A sua utilidade é extraordinária e salva as vidas que são preciosas.
João, marido
Estes foram os primeiros pensamentos, aqueles que afloram à pele e se colam para não mais sair. Um desânimo tão grande que o levou a fazer um esforço hercúleo para superar o peso que sentia por todo o corpo. Depois, com mais calma e com o passar do tempo percebeu que devia deitar fora tudo o que não valia a pena.”Não sei por onde começar. Já é a segunda vez que passo por uma situação destas. A primeira foi com o meu pai e, no dia em que a minha esposa me disse que podia estar com cancro, parte do meu mundo ruiu. Não quis aceitar. Porquê ela, que não fez mal a ninguém? Tenho ajudado tantas pessoas, de todos os tipos e classes sociais e agora acontece isto?”
“Não somos nada, não vale a pena sentirmos ódio, raiva, inveja de ninguém, porque não somos nada e somos tudo. Temos é que viver um dia de cada vez e aproveitar o que a vida nos dá.
Nunca chorei ao pé dela para não a desanimar e tento sempre estar alegre, ser a pessoa que sempre fui, sensível, carinhoso e dar todo o apoio que for necessário. Tento estar sempre presente em todas as adversidades que posamos ter, ir com ela aos exames, às análises, às consultas, dar atenção, paciência e muito amor.
Ela ficou esquisita com muitas coisas, mas não podemos ligar a isso, porque ela está a sofrer muito mais do que eu e só quem passa por elas é que sabe dar valor. Saio mais cedo do trabalho e os meus colegas ficam muito admirados, porque lhes digo que vou para casa ter com a minha mulher, porque ela precisa de mim. Quero estar mais tempo com ela e todo o tempo é pouco. Eles não entendem.
Que posso dizer mais? Amo-a, sou doido por ela e tenho a certeza que ela sente o mesmo por mim.”
A mulher ainda tem um longo caminho pela frente. Atravessou todas as fases menos boas, mas teve sempre o marido ao seu lado e que se iniciou nas lides domésticas. Também lá mora e deve contribuir. É um trabalho de parceria que vai correr bem. A forma de estar e de ver a vida altera-se com a chegada deste inquilino tão incómodo que teima em ficar. A casa transforma-se num lar ainda mais protector, onde a família encontra o seu porto seguro e descansa de mais um dia intenso de vida que é vivida em pleno.
“É um choque entre acreditar, em perceber que é verdade e a loucura de pensar que vivemos iludidos com o facto da nossa mãe não ter prazo de validade. É um facto.”
Ana, filha
“Ver alguém que amamos incondicionalmente sofrer diariamente, cada dia mais, um pouco mais do que ontem e talvez menos do que amanhã é pensarmos porquê a ela e não ao vizinho. A consciência de que isso é um pensamento de puro egoísmo surge no momento a seguir, quando percebemos que se aconteceu foi por alguma razão. Nada é por acaso e o acaso não existe.”
É uma adolescente que é apanhada de surpresa nesta corrida contra o tempo. A própria mãe não percebeu, no início, o que se estava a passar. Dona de uma garra notável atirou-se de cabeça para o abismo que se avizinhava. Um grupo de amigos e colegas fizeram o cordão necessário para a protecção e segurança que a luta implicava. Uma luta tão desigual como a doença em si.
“Pensamos que por mais que a moda cancro tenha chegado à nossa morada não será por muito tempo. Não pode ser. Vemos os conhecidos a ficarem curados e, neste caso, não seria diferente. Começam as promessas, viagens e sonhos que queremos realizar. Há muita vida para viver. Até ao dia. Negro. O grande musculado e imbatível consegue ganhar a batalha e deixa o esquelético herói caído no chão, sem mais nenhuma vida para viver.
É um choque entre acreditar, em perceber que é verdade e a loucura de pensar que vivemos iludidos com o facto da nossa mãe não ter prazo de validade. É um facto. Surgem flores, muitas, que acabam secas, como o coração dos seus, lágrimas de crocodilo, discursos moralmente correctos e surge família que nunca tinha marcado presença. Surge tudo, mas o que acaba é o nosso braço direito. O dia-a-dia torna-se uma aprendizagem para alguém que é destro.
A princípio custa muito, porque procuramos a mão, quando estamos na guerra sem mantimentos ou quando a nossa única mão, capacitada para nos limpar o cansaço do quotidiano, já não existe. Com o tempo vai-se entranhando. Estranhar, estranha-se sempre. Entranhado é impossível de ser feito a 100%. Deseja-se, compulsivamente, não deixar de se gostar daquela pessoa que nos trouxe ao mundo, tentar reviver o primeiro minuto em que nos deitaram sobre o seu peito cansado, que, mesmo após longas horas de parto, ainda foi capaz de me aconchegar.
Apesar da sua aparente fraca figura, tinha a força de um combatente do exército. Durante dois anos, pensei que os pesadelos só aconteciam nos filmes. Custa muito, mas acabei por perceber que alguns pesadelos têm finais felizes.”
A mãe não conseguir resistir a um inimigo desigual não obstante as suas duras batalhas ganhas. Foi um processo complexo e muito doloroso que obrigou os dois filhos, menores, a um crescimento precoce. O marido será pai e mãe, tarefa gigantesca que tem conseguido desempenhar com alguma dificuldade. A dor, bem recente, vive naquela casa onde ainda se respiram os enormes e benéficos ensinamentos daquela mãe guerreira.
“Não sei se continuei a andar em círculos, se me sento, se grito, não sai qualquer som da minha garganta. Ela tem cancro. A minha pessoa, a minha mãe, o meu pilar tem isso, tem cancro.”
Isabel, filha
“Teratoma num ovário. A minha mãe, com 52 anos, ainda era menstruada. Em dois meses, uma cirurgia simples resolveu o assunto. Perda de sangue. Com a tomada de antibióticos e aplicação de uma pomada anti-fúngica, tudo ficaria normal. Na verdade, voltou a acontecer. Agora deram-lhe comprimidos. A hemorragia voltou e passaram seis meses até que fosse feita a biópsia.
Eu sou enfermeira, estou na linha da retaguarda, de braços esticados para amparar o doente e a família. Eu explico o que o médico não consegue explicar com palavras de pessoa. Eu acompanho o passo dos doentes. Eu soube, mas não quis absorver até que chega o dia do resultado das análises.
Eu lido com isso, mas entro em pânico, quando oiço a minha mãe a responder que sim, quando lhe pergunto se é maligno. Falta-me o ar. Fiquei sem paredes à minha volta ou foram contra mim, saíram do sítio e nem dei conta. Faltaram-me as palavras. Não sei se continuei a andar em círculos, se me sento, se grito, não sai qualquer som da minha garganta. Ela tem cancro. A minha pessoa, a minha mãe, o meu pilar tem isso, tem cancro.
É encaminhada para o IPO. Ainda havia a dúvida se depois de ser submetida a uma histerectomia era necessário passar pela quimioterapia. Mas foi. Havia pequenas metástases. O chão saiu-me de novo dos pés. Mas a minha mãe está ao meu lado. És enfermeira. Controla-te. Sinto o ar nos pulmões a colapsar, os brônquios a fechar. O ar não entra nem sai. Eu não a quero ver a sofrer. Eu sei como vai ser. As dores, as náuseas, as tonturas, os vómitos. A queda do cabelo, as análises, as consultas, a procura da veia, não ter cheiro nem sabor, as idas e vindas e o estranho sabor na boca, os edemas e o emagrecimento. O que vai ser dela?
Tive que colocar toda a minha confiança nos meus colegas que também estendem os braços aos doentes, que também confortam as famílias. Fui a poucas consultas, porque não era a única doente na família. A culpa ainda me consome mais. A impotência de não avisar o médico sobre as análises, sobre a terapêutica, sobre tudo. O que mais me custava era não poder vasculhar o processo e verificar o desenvolvimento dos tratamentos e procedimentos.”
Quem trabalha no ramo pode ter a tentação de pensar que fica imune às emoções e que estará perfeitamente habilitado a superar os aspectos negativos. É uma ilusão. A dor torna-se mais profunda, porque já tinha sido estudada. Para os outros. Nunca para os nossos. Uma espécie de alicate que vai torcendo até conseguir torcer. São momentos duros que deixam marcas para sempre.
“Inicia os tratamentos. Ela é guerreira, tipo herói que destrói os obstáculos que se atravessam à sua frente, qual personagem de filme que aguenta os embates dos inimigos, que luta, acabando magoado, mas com a vitória ao seu lado. Nunca parou de trabalhar. Eram limpezas num ginásio. Dia sim, dia não, depois dos tratamentos vinha a limpeza do chão, das máquinas, das salas, os vidros, as prateleiras. Voltava mais forte e mais feliz. Outra vitória.
Também teve percalços. Um dia caiu ao lado do meu pai. Estava pálida, translúcida, cansada, cheia de olheiras e sem força nenhuma. Enfim, completamente fragilizada. Não desarmou. Fazia do sorriso armadura, fazia do espelho espada de batalha. Ela diz que o espelho foi o seu melhor amigo. ‘Olha lá tu estás parva ou quê? Estás a ir abaixo porquê?’ Foi uma forma caricata, mas funcionou. Superou.
Eu sou enfermeira, mas na altura sentia-me de novo a criança que dá a mão à mãe, à espera que ela a acompanhe no caminho certo. Desta vez também me deu a mão a mim em busca de conforto. Fomos companheiras uma da outra.
Hoje sou uma melhor enfermeira. Sou melhor filha. E a minha mãe é a melhor super-mulher que alguma vez existiu.”
Esta mãe está novamente numa situação de balanço. O seu corpo voltou a dar sinais de que algo se passa e a vigilância terá de ser novamente apertada. Não se pode baixar a guarda, que a doença está sempre à espreita. Com o seu enorme e bonito sorriso, encara tudo com a maior das naturalidades, mesmo que tenha de abdicar de certos programas. A vida é nova todos os dias e é para ser vivida em pleno.
“As crianças iriam crescer sem pai, mas tinham uma enorme mãe. Eu tentei estar sempre presente e dar tudo o que fosse possível. Aquilo que podia e sabia ser imprescindível: amor. Nunca imaginaria que, passados uns anos, iria ter uma luta idêntica.”
Luísa, amiga
“Havia qualquer coisa nele que sempre me fez desconfiar que algo não batia certo. Primeiro, via uma cor no rosto que não espelhava somente o cansaço e depois o desânimo veio confirmar as minhas suspeitas. A idade pode ser um facto redutor e foi este o caso. Eu via a vida a desaparecer, a vontade a seguir esta ideia.
Não sei se ele pressentiu o que se avizinhava, mas vi-o a deixar que a doença tomasse conta dele, daquele corpo que ia ficando cada vez mais frágil e abatido. Havia duas crianças pequenas e o esforço e a energia eram usadas para as amparar. Custava-me não ser mais prestável, mas não conseguia chegar a tudo. De início, pensei que era passageiro, mas rapidamente verifiquei que a situação era bem mais grave do que avaliei.
Naquela altura, a vida era tão rápida que foi complicado encontrar uma logística para que tudo funcionasse dentro do expectável. Os amigos disponibilizavam-se, mas não era o suficiente. Falta o essencial, a força para viver. Deixou-se levar e nada o demovia dessa letargia.
Tratamentos e mais tratamentos e o aspecto cadavérico estava instalado para não mais sair. Notaram-se algumas melhorias, mas a alma estava já morta e recusava-se a acreditar que dias melhores eram possíveis de acontecer. A certa altura, já não sei dizer se gostava dele ou não, mas estava a criar-me uma enorme ansiedade. Tentei afastar-me, mas uma força enorme impeliu-me para continuar. Não o podia abandonar.
Ele afastava todos com alguma brutidade. Era a revolta que se instalava e, no fundo, todos entendiam. No hospital, o ambiente não era decrépito, mas o local cheira sempre a doença e inevitavelmente a morte. Voltou para casa. Estava mais forte, mas esta pequena esperança durou pouco tempo. Foi-se encolhendo e a sua figura estava quase invisível.
Eu fui a segunda linha de combate, a cuidadora dos cuidadores, daqueles que por laços familiares estavam sempre na dianteira. Alguém tinha que os amparar, dar-lhes a mão e uma palavra de conforto. Havia esperança de que tudo voltasse ao normal, mas nada seria com dantes. Esta doença altera tudo e a fase de tratamentos proporciona uma enorme meditação.”
Neste caso, verificaram-se melhorias consideráveis e até se faziam planos de futuro. O corpo estava fraco, necessitava de tempo para recuperar, o que poderia ser demorado. O filho assistia a tudo incrédulo e via-se um enorme sofrimento no seu semblante. Uma criança que presenciava um degradar do corpo, um pai que se ausentava para conseguir ficar presente. A filha, de tão pequena, não tinha noção do que se passava. A mulher foi o pilar da família, a força e a energia essencial para a caminhada da vida.
“Voltou para casa com a convicção de que recuperaria rápido e voltaria a trabalhar. Uma esperança que foi de vários e que parecia ser o mote diário. Um perfeito engano. Nunca mais as coisas seriam iguais e, em pouco tempo, se verificou que a tal esperança era somente uma palavra. Teve uma fase simpática, mas tudo piorou. Perdeu a garra e deixou-se levar. Era complicado olhar para a sua figura que se entranhava até na alma mais dura.
A batalha e a guerra foram perdidas numa segunda feira e penso que, apesar de esperado, foi um duro golpe para os mais chegados. A morte é sempre difícil de aceitar, mesmo sabendo que faz parte de vida. Foi um sofrimento gigante. Se durante o tempo da doença, a mulher dele foi duma dedicação sem par, o seu desaparecimento fez com que o chorasse magistralmente.
Teve o apoio de muitos amigos, essencial para curar feridas e criar armaduras sólidas. As crianças iriam crescer sem pai, mas tinham uma enorme mãe. Eu tentei estar sempre presente e dar tudo o que fosse possível. Aquilo que podia e sabia ser imprescindível: amor. Nunca imaginaria que, passados uns anos, iria ter uma luta idêntica.”
As crianças estão crescidas e o mais velho é adolescente. A vida seguiu o seu ritmo natural e, apesar de alguns percalços, tudo se encaixou no xadrez desta família, agora recomposta. A marca será indelével e os frutos dessa ligação continuarão pela vida fora. O filho cresceu cedo demais e a filha não se recorda. Mazelas que podem ser medalhas de vitória. Grandes aprendizagens.
“Sinto que estou num pesadelo e quero acordar, mas não consigo. Parece que o universo se juntou para conspirar. Isto nunca devia ter acontecido. Tenho muita fé e sei que tudo se vai resolver. Leva mais ou menos tempo, mas o importante é que ele fique bom e que esta etapa seja somente uma recordação que fique muito para trás, num passado muito longínquo.”
Dulce, mãe
“Quando estava ainda em tratamento, debilitada e muito cansada, o meu filho, um jovem cheio de força e muito determinado, teve um episódio que o levou ao hospital. Entre exames e mais exames, descobriram a causa das queixas. Um problema grave num testículo. Um tumor.”
O pânico tomou conta desta mãe que estava numa dupla batalha: a dela e a do filho, que estava a começar. Por momentos, pensou que era somente um sonho, daqueles maus, mas que iria passar. No entanto, a realidade chamou-a à Terra e aterrou de pés juntos. O seu filho estava a ser atacado pelo mesmo inimigo. Da fraqueza fez força e uma nova luta seria travada. Um enorme golpe do destino que custa a aceitar.
“As piores suspeitas confirmaram-se. O tumor não era dos simpáticos. O meu coração ficou pequenino e mirrou! O meu menino a ter que passar por tudo aquilo que eu já deixei para trás… Como é que isto foi acontecer? Se eu pudesse trocava com ele, voltava a fazer tudo de novo, a sofrer as mesmas dores, mas sentidas por mim que sou a sua mãe.”
Neste momento, a sua rotina ainda está condicionada pelos tratamentos que não terminaram. Uma enorme energia emerge do seu íntimo para trazer luz ao seu filho, ao ser que será sempre pequenino e precisa do seu conforto e apoio. Agora mais do que nunca. Irão partilhar experiências e dores, lágrimas e incertezas, mas todas misturadas com uma esperança luminosa e gigante que os vai orientar.
“Ele sabe que lhe vai cair o cabelo, que ficará mais fraco, mas a preocupação é o seu dia-a-dia, a escola, a sua vida. É uma situação quase surreal. Sinto que estou num pesadelo e quero acordar, mas não consigo. Parece que o universo se juntou para conspirar. Isto nunca devia ter acontecido. Tenho muita fé e sei que tudo se vai resolver. Leva mais ou menos tempo, mas o importante é que ele fique bom e que esta etapa seja somente uma recordação que fique muito para trás, num passado muito longínquo.”
E assim, sem mais nem menos, toda a vida familiar fica perdida numa espécie de abismo que puxa e tende a desorganizar tudo. Por mais força que se faça, há a tendência de voltar ao mesmo. Esta família é muito forte e os laços que os unem são uma corrente poderosa que os protege e está sempre presente. Desafios que a vida vai lançando, a torto e a direito e que serão superados com uma força tão extraordinária como única.
[tie_slideshow] [tie_slide]David, voluntário
“Quando me reformei tinha em mente fazer várias coisas. A primeira de todas era viver sem o ritmo frenético a que estava acostumado. Queria descansar e regressar aos hábitos antigos. Pintar sempre foi estimulante e era um dos desejos. Estar em contacto com a natureza e redescobrir-me. Um dia, em passeio por Lisboa, entrei no IPO. Fiquei ‘colado’. Tanta dor e tanto sofrimento tocaram a minha pele e foi assim que me tornei voluntário.
De início, talvez pela minha inexperiência, julguei que eram somente umas horas em que estava fora de casa e me sentia útil. Rapidamente, percebi que seria muito mais do que isso e que aquela casa passaria a ser a principal. As paredes contam histórias terríveis, cheias de silêncios e de dores que nem se consegue imaginar.
Tentei ser o ombro amigo, a pessoa que estava sempre presente para ouvir um desabafo, ter uma palavra simpática e ajudar no que fosse possível. O meu primeiro dia nunca mais sairá da minha memória. Foi um choque, assim como que um bafo muito quente que nos sopra para a cara e nos confunde. Crianças a sofrerem e a portarem-se bem melhor do que os adultos.”
Sem se aperceber o que acontecia naquele hospital, foi tomando conta de si e começou a viver os dramas daquelas vidas que tinham sido presenteadas com uma doença de difícil combate. Nem sempre ganho. Muitas vezes reincidente.
“Ficava tão satisfeito, quando se iam embora, tendo em mente que estavam curados. Isso não existe e facilmente o descobriam. Mas o ânimo era outro e sentiam-se mais leves e aptos a lutar. Havia alguns que voltavam. Esses custavam mais, porque se tinham convencido de que tudo estava resolvido.
Um senhor, já com alguma idade, nunca aceitou que estava doente. Para ele, eram uns dias em Lisboa e voltava para casa. Tornou-se cada vez mais amargo e eu liguei-me a ele. Só vi bem a dimensão do laço, quando ele morreu e tive que tapar o corpo. Senti o seu último suspiro, a sua mão a ficar sem força e a sua maldade a desaparecer. É algo que não se quer sentir.”
Este homem teve que abandonar este altruísmo, porque uma pessoa muito próxima necessitou dos seus serviços, de uma ajuda constante e permanente. A ironia do destino continua a adiar o seu desejo de viver no campo, mas, conforme ele diz, “enquanto alguém precisar de mim, estarei presente.” [/tie_slide] [tie_slide]
Júlio, cunhado
“Não me consigo esquecer da maneira como ela se despediu de nós. Ela sabia, mas não nos queria atormentar. Para mim, ela era a irmã que nunca tive, a sensibilidade feminina que eu precisava. Crescer no meio de irmãos pode tornar-nos muito brutos e distraídos. Ela era a flor que o meu jardim necessitava. Tínhamos uma relação de cumplicidade.”
O seu tom embargado transmite o sentimento forte que partilhavam e que nunca se irá desfazer. Aquela palavra, carregada de simbolismo, ainda dizia respeito só aos outros. Nunca tinha experienciado algo tão potente e negativo. A realidade de outros passa ao lado, mas a nossa é que se torna verdadeira e real. Parece uma faca que se espeta nas costas e teima em ficar.
“Ela levou tudo com uma enorme calma e delicadeza, como se não fosse nada com ela. O efeito dos tratamentos, a início, não se notava e a vida seguia como sempre. Vivíamos em cidades afastadas e as reuniões de família eram periódicas. Numa delas, notei-a cansada, mas como tinha sido mãe há pouco tempo pensei que era normal. O que me cortou o coração foi na vez seguinte: estava numa cadeira de rodas. Não conseguia andar, porque tinha apanhado uma bactéria no hospital. Voltei a não associar. Quem tem um bebé vai muitas vezes ao hospital.
O Natal é sempre a época em que estamos todos juntos e que fazemos um esforço para estar o máximo de tempo possível em família. Aquele ficou marcado pela negativa. Fiquei muito admirado de a ver, ainda, na cadeira de rodas com o menino ao colo. Eu brincava a dizer que era o Menino Jesus que ela carregava e ela sentia-se abençoada. A ceia decorreu na maior das normalidades e ela ria-se com gosto.
A cadeira de rodas era manobrada com algum esforço, mas, mais uma vez, não percebi o que se passava. Para mim era temporário. Depois da ceia chamou-me à parte e pensei que era para me vestir de Pai Natal, como fazia sempre. Com uma calma imensa disse-me que não ia ver crescer o menino e que esse era o seu maior desgosto. O meu coração deu um pulo. Que era aquilo?
Não vou contar o discurso dela, que ainda hoje está nos meus ouvidos, mas a tomada de consciência da realidade deixou-me as pernas fracas e sem reacção. Ela ia partir e muito em breve. Nem o meu irmão sabia da gravidade da situação. Penso que ele estava tão ocupado a dar-lhe todo o apoio possível, que vivia num mundo à parte. Fiquei branco, quando ela me disse que tinha desistido dos tratamentos. As mulheres sabem e mais uma vez ali estava a prova.
Morreu no dia seguinte e, para todos nós, o Natal representa dor e um sofrimento que nunca poderá desaparecer. Eu nunca mais senti aquela alegria da data, mas pelo menino e pelos outros pequeninos da família tivemos que continuar. Ainda me custa tanto falar disto. O meu irmão entrou em profunda depressão e ainda foi mais duro continuar. Penso que ele se fechou para o mundo. Morremos todos um pouco.”
O menino está em idade pré-escolar. Faz perguntas e interessa-se por tudo. Não tem mãe, mas existe quem lhe dê sempre a mão, quem o oriente e lhe dê as indicações necessárias. Pergunta pela mãe. Dizem que já não existe. Querem dizer a verdade, mas não se encontram as palavras certas para dizer a uma criança de cinco anos que a mãe, tão jovem, morreu de cancro, uma doença complicada. Não se diz a um menino que a vida é efémera e que ninguém é dona dela. Ensina-se simplesmente a viver. [/tie_slide] [tie_slide]
Carlos, marido
“Se existe palavra ou sentimento é impotência. Ver a pessoa que amamos e que connosco partilha a vida a sofrer de várias formas é assustador. Dizia-lhe: vai passar, é só uma fase, é só mais um tempo, uma batalha. No final, vences a guerra. Não sei se acreditava. Foram inúmeras sessões de quimioterapia, horas de agonia num local onde estavam mais de dez pessoas na mesma luta, mais parecia um campo de batalha.
Deu-lhe o nome de bicho maluco. Tentei ser engraçado, deitar umas piadas e graçolas para tentar melhorar o ambiente e ajudar a passar aquele período. No entanto, confesso que, quando ia buscar a medicação, uns meros trinta minutos, eram um escape e permitia-me exteriorizar o que sentia, mesmo que nada mais pudesse fazer.
Numa determinada altura, optei por uma outra postura, tentar desvalorizar, dizia-lhe para não se preocupar que tudo iria passar. Eu não queria que ela se focasse no problema e tentei que ela pensasse que era só um pormenor, uma mera questão de tempo. Na minha mente, pensava que, se não lhe desse importância, talvez ela desvalorizasse.”
Contudo, esta família tinha uma questão ainda mais importante, um pequeno ser que dependia deles em absoluto, pois era uma criança com menos de dois anos. Ele não percebia o que se passava e estranhava a ausência da mãe, a pedra basilar da sua vida. Não se explica a um bebé que a mãe não pode vir a casa e que pode mesmo não voltar.
“Houve noites muito complicadas e essas foram passadas no hospital e não no conforto do lar. Sentia a vulnerabilidade a aumentar ao longo do dia. O mais difícil foram as alterações físicas, como a perda do cabelo e a inglória mastectomia. Ela soube dar-lhes a volta e nunca passou para o filho esse sentimento de perda. Para ele foi normal. Fiquei aliviado por ver a forma como tudo se estava a passar.
Não a amo menos por ter menos um seio, pelo contrário, os índices de admiração e orgulho aumentaram exponencialmente. Para uma mulher, esta etapa não é nada fácil do ponto de vista psicológico.
Um diagnóstico destes abala a estrutura familiar, é necessário reorganização e muito esforço A minha mãe tinha perdido a luta, com um cancro no estômago, e voltar ao mesmo pesadelo era impensável. Durante todo este processo, vivemos uma montanha russa de sentimentos de intensa angústia, sofrimento e de grande ansiedade. O futuro apresentava-se incerto, tudo parecia adverso, sobretudo, quando se registavam perdas. Hoje o bicho maluco é uma recordação.
Tentei sempre espantar fantasmas e maus pensamentos, estando presente, mas, na realidade preferia ter sido eu o campo de batalha apesar de não ter a certeza de conseguir travar a luta com a mesma coragem.
Choca-me que, no século XXI, ainda se viva com o mistério que esta doença representa.”
Esta última frase é mencionada por todos. Numa sociedade onde se investe tanto dinheiro em interesses particulares, em detrimento dos interesses colectivos, é criminoso permitir que as pessoas continuem a morrer, porque a saúde é relegada para segundo plano. Não se investe em prevenção, porque é mais proveitoso criar doenças para que a indústria farmacêutica continue a aumentar os seus lucros. [/tie_slide] [tie_slide]
Alberto, marido
“Recebi a pior notícia que poderia ouvir. A minha filha telefonou-me e disse que a mãe tinha cancro da mama. O mundo parou, abriu-se um buraco aos meus pés. Respirei fundo. Houve um silêncio e depois saiu um monte de palavrões como desabafo. Fui até ao hospital e estava também a minha nora. Era um tumor com 3 cm. Abracei a minha mulher e houve lágrimas, olhos nos olhos e a certeza da luta para vencer. Afastei-me para telefonar a um colega e tive um momento de pânico. Descontrolei-me um pouco. Estava perdido.
Decidimos comunicar à família e não esconder nada. Liguei ao meu filho, que estava em Angola, contando tudo o que se passava. Na nossa família, temos um lema: a verdade acima de tudo, sem omissão de nada. As forças começaram a fugir, mas lutei sempre para não ceder.
Assumi que não ia falhar no amparo à minha companheira de tantos anos. Já tínhamos ultrapassado outros momentos menos bons e este, de certeza o mais difícil, também seria superado. Já lá vão vários meses e ainda vai durar. Ela é uma grande guerreira! A partir desta data, a minha vida é dedicada a ela, à minha mulher, companheira, mãe dos meus filhos e a minha maior e melhor amiga.”
Quando se é apanhado numa teia tão densa, o desespero pode querer impor-se. Se houver uma rede sólida familiar, que foi o caso, as dores são repartidas e os caminhos tornam-se menos complicados de seguir. Cada dia é sempre novo e as pequenas batalhas ganhas acabam por ser festejadas em conjunto. Este homem também renasceu e voltou a ser menino.
“A operação gera muita ansiedade. O nosso filho chegou na véspera, de surpresa. Foi uma maravilha. Correu bem, mas o compasso de espera dos resultados é desgastante. Pensa-se sempre o pior. Ela chega a casa e o nosso filho tem um problema de saúde. Mais uma pedra no caminho. É internado de urgência e corre tudo bem. Ela não se dá por vencida e luta para que tudo seja fácil de ultrapassar.
A quimioterapia fez-me acordar e entender que as lides domésticas também são da minha responsabilidade. Ela decide cortar o cabelo, porque não o quer ver cair. Os filhos vão com ela. Eu não tive coragem. Assumiu a careca sem problemas. As sequelas são complicadas, sobretudo, para uma pessoa com uma vida muito activa. Há um descontrolo emocional que provoca alguns atritos entre nós. A seguir veio a radioterapia, mas não foi tão fácil como se podia pensar. Eu tenho que ser forte para aguentar o choro, o mau estar, as dores e o cansaço. Ela foi sempre uma verdadeira lutadora.
Eu só pude estar ao seu lado a dar carinho e amor. A paciência vai-me faltando. Há um enorme desgaste. Ainda não sei como me encontro. Não sei se falhei, se poderia ter feito melhor. O cuidador fica marcado para o resto da sua vida. Espero um dia chorar tudo, desesperadamente, e descarregar toda esta carga tão pesada que fui acumulando. Nunca pensei ser tão resistente.”
A mulher terminou todos os tratamentos e está na fase de “acalmia”. Vive-se um dia de cada vez e a guerra nunca está ganha. As batalhas vão sendo vencidas e as vitórias acumuladas, mas a guerra está longe de ser vencida. O inimigo está sempre por perto, atento a qualquer pequeno deslize, a uma porta que possa ficar aberta sem querer. O marido redescobriu-se e a ligação entre os dois ficou mais sólida e renascida. [/tie_slide] [/tie_slideshow]
Depois da dura guerra, como fica o cuidador?
É inegável que passar por uma experiência deste teor muda quem está do outro lado. A experiência é emocionalmente brutal, especialmente quando o cuidador foi cuidado pelo doente. O tempo desaparece e a cabeça não se liberta, mas este tempo é especial, dotado de afecto e de uma enorme ternura.
Alguns são super-heróis que abdicam da sua vida por amor incondicional. E o fermento cresce, enquanto o doente está presente. É o lubrificante da relação, porque o adeus deixa feridas incuráveis. Quando chega a hora da partida, quem vai leva um pouco de quem fica.
“Tentei ser o ombro amigo, a pessoa que estava sempre presente para ouvir um desabafo, ter uma palavra simpática e ajudar no que fosse possível. O meu primeiro dia nunca mais sairá da minha memória. Foi um choque, assim como que um bafo muito quente que nos sopra para a cara e nos confunde. Crianças a sofrerem e a portarem-se bem melhor do que os adultos.” David, voluntário
O desgaste psicológico é gigantesco, sobretudo, quando a vida obriga a que se torne mãe ou pai dos progenitores. O ser humano vai perdendo as faculdades e mostra um lado que se desconhecia e que se gostaria de evitar. A vida não é rancor, mas sim solidariedade. Quando alguém parte e aumenta a intensidade do sofrimento, entende-se que além da enorme saudade fica o sentimento de dever cumprido.
Descobrem-se valências que se desconheciam e forças de tal modo potentes que se ultrapassam as maiores montanhas e atravessam-se oceanos mais profundos de uma só braçada. São abraços que confortam, mãos que acariciam e corações que sangram. Faz-se das tripas coração e os dias são de luta constante e interminável. Nem sempre com os resultados esperados.
As grandes batalhas da História Mundial podem parecer menores perante um inimigo como este, invisível e ultra-inteligente. Essas eram jogadas por interesses políticos, pela posse do território ou até mesmo por alguns caprichos. Estas são bem diferentes e não usam armas visíveis. Tudo é passado numa retaguarda e, quando se sente a lança a picar, a torcer o que está dentro, muitas das vezes é ignorado. Os sinais de alerta podem ser verdadeiramente assustadores, mas devem ser ouvidos.
Segundo os especialistas, a taxa de incidência de cancro tem vindo a aumentar e será inevitável que provoque inúmeras mortes. O cancro do pulmão tem ceifado mais vidas femininas do que masculinas e tem origens bem diferentes. Os chamados fumadores passivos tornam-se vítimas de um hábito pouco saudável praticado por outros. Mesmo com nova legislação e medidas de restrição, o tabaco não baixou a sua quota de consumo no mercado.
Tal não invalida que existam ainda 7% de resultados menos positivos. Isto pode acontecer, devido a vários factores, sendo o mais comum a não aceitação da doença. A verdade é que a palavra é dura e custa a ser ouvida e interiorizada. Como primeira reacção, pensa-se que houve um lapso no diagnóstico ou que se deu uma troca de resultados. É a réstia de esperança de que seja mesmo um engano.Assustador parece ser o cancro da mama que ataca mulheres de todas as idades e teve um crescimento exponencial nos últimos anos. Se há cerca de três anos se previa que duas em dez mulheres iriam padecer dessa enfermidade, nos dias de hoje esse número aumentou para oito. Se for detectado a tempo e os tratamentos foram todos efectuados, a taxa de sucesso é bastante elevada, cerca de 87%.
Alguns pacientes demoram muito tempo a aceitar o diagnóstico e esse compasso de espera pode vir a revelar-se fatal. O medo, outro intruso, passa a fazer parte da vida, a acompanhar o dia-a-dia e a sentar-se à mesa para tomar as decisões. Dorme ao lado de muitos e sussurra-lhes ao ouvido todas as barbaridades que podem acontecer. Não há outro modo de dizer: esta doença pode ser mortal.
Cada paciente encontra o seu caminho, um caminho que se sabe, de antemão, que não será fácil e que pode sofrer imensas reviravoltas. Nada é linear e os tratamentos que possam ser necessários fazer são pequenas batalhas ganhas a um inquilino que se instalou e não paga renda. Um ocupa que não quer sair. Um irredutível parasita.
Depois das várias batalhas ganhas, a guerra ainda lá está. Nunca se pode dizer que o cancro foi derrotado. Ele está adormecido e assim deverá ficar, mas pode acordar a qualquer momento e provocar outro estado de sítio que leva tudo pela frente. Por isso, as consultas de acompanhamento e todos os exames pedidos não devem ser descurados. Eles são fulcrais para a manutenção da hibernação do bicho matador.
“Eu só pude estar ao seu lado a dar carinho e amor. A paciência vai-me faltando. Há um enorme desgaste. Ainda não sei como me encontro. Não sei se falhei, se poderia ter feito melhor. O cuidador fica marcado para o resto da sua vida. Espero um dia chorar tudo, desesperadamente, e descarregar toda esta carga tão pesada que fui acumulando. ” Alberto, marido
Regressar à vida normal é impossível, porque nada voltará a ser como era antes. E uma nova vida que aparece e todos os passos parecem ser novos. É um novo ser que enfrenta uma outra vida que ainda desconhece. A anterior pessoa ficou no passado e a nova pessoa ainda tem que aprender a lidar com todas aquelas barreiras que se afiguram complicadas e intransponíveis. É um renascer que se faz diariamente.
O corpo parece não servir, mas tudo faz parte da nova oportunidade que é dada. Os ombros estão sempre apertados, mas isso é para esconder o medo e a raiva de não puder controlar uma doença deste tipo. O coração estende-se e sabe que o amor é o combustível da primeira causa que advoga. Os pequenos detalhes, aquelas coisinhas sem importância, passam para segundo plano e a vontade de viver é cada vez mais forte.
Sobrevivente. Sobreviventes. A vida tem limites, mas desconhece-se a duração de cada um. Esta é uma luta contra o tempo e a inconstância. Uma espécie de Blade Runner, mas vivido por seres humanos, com pessoas reais, de carne e osso e com sentimentos verdadeiros e memórias próprias. Nada é implantado e tudo é doloroso e pesado.
A seguir à tempestade vem a bonança e as ondas revoltas acalmam, durante a recolha da maré. É o descanso merecido, após o inesperado tsunami de emoções e contradições que é sempre vivido por quem tem que superar estas aventuras em alto mar, fora de pé e sem boia de salvamento. Viva a vida!