Já imaginou um dia acordar e não conseguir ouvir o despertador? Ou confiava no relógio humano, ou, então, chegava tarde ao trabalho e ainda tinha de convencer o chefe que a surdez agora fazia parte dos seus dias. A partir desse dia, não ia desfrutar de uma bela conversa junto dos familiares e amigos, ou relaxar com uma melodia clássica. Será? Existem muitas soluções para a surdez, dependendo do tipo de diagnóstico e, claro, da vontade do doente.
Existem dois tipos de perda de audição. O primeiro tipo é permanente e acontece quando o ouvido interno, ou nervo auditivo é corrompido. O outro tipo acontece quando as ondas de som não conseguem chegar ao ouvido interno seja devido à cera, a fluido, ou por causa de um tímpano perfurado. Interessa que a pessoa cure, pois os problemas de audição tendem a piorar. “Os seres humanos, para terem uma compreensão total da mensagem auditiva têm de integrar o chamado ‘envelope da fala’, ou seja, o timbre, o ritmo, a intensidade, as variações, o contexto e, por outro lado, os próprios fonemas um a um. Os dois hemisférios cerebrais encarregam-se de cada uma destas funções”, sublinha Luísa Monteiro, directora do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Dona Estefânia.
Facto é que a Surdez acaba por ser um defeito invisível em que apenas quem sente esse defeito é quem o tem. O isolamento e, em especial nas crianças, o fracasso escolar acabam por ser consequência da dificuldade em ouvir e, sendo a audição o sentido mais importante para situar o homem no mundo, a comunicação para com os outros acaba por ser diminuta. “Um momento ouvir e no dia seguinte não ouvir, com apenas 18 meses de idade o meu mundo infantil desmoronou e agora? Que me aconteceu? Onde estão os sons que outrora banhavam em mim, não consigo escutar e quando mais grito eles não chegam aos meus ouvidos cujas primeiras palavras precisas começara a emergir”, refere um testemunho no blog Olhos que Ouvem, Mãos que Falam. A motivação dos otorrinolaringologistas para curar os seus doentes prende-se normalmente nessa ideia.
Hoje em dia existem tratamentos para curar a surdez: os aparelhos auditivos, implantes cocleares, medicamentos, cirurgia e um treino especial para audição. Dependerá do tipo de problema que a pessoa tem. Dependerá também da vontade do doente. Quantas vezes já se encontraram numa plena madrugada em que o chihuahua da vizinha decidiu ser o galo despertador às quatro da manhã? Um surdo não era incomodado nessas situações. Por esta e outras razões, existe ainda a hipótese de não tratar a surdez e adoptar o inicial defeito como se fosse uma característica pessoal. Esta hipótese é dirigida, sobretudo, aos que foram surdos toda a vida e aprenderam a lidar com essa incapacidade, através da língua gestual e da leitura dos lábios. Também sustenta tal escolha o facto de estudos apontarem que o cérebro adulto tem dificuldades em adaptar-se ao “mundo auditivo”, quando comparado ao cérebro de uma criança. Com tantas objecções, valeria a pena fazer um implante?
O caso da actriz Emily Howlett exemplifica o porquê de permanecer surda. Recentemente rejeitou a oferta de poder ouvir. A médica referiu que, se ela não aceitasse o implante, ia acabar por ficar completamente surda e, posteriormente, perderia a voz e não conseguiria ler os lábios – características que até então a actriz tinha, uma vez que não havia nascido surda. Um ano antes a actriz tinha protagonizado alguns filmes, onde começou a descobrir a comunidade gestual, fez amizade com pessoas que tinham problemas auditivos semelhantes, ou piores e aprendeu a linguagem gestual. Desde que se habituou a essa ideia, Howlett identificava-se como uma pessoa surda e sentia que era uma nova etapa da sua vida. Como refere a actriz, “a minha vida não se resume a ser surda. A minha vida é apenas a minha vida e acontece que sou surda.”
Outro motivo que fazia Howlett ter a certeza que não havia necessidade de ouvir estava relacionado com o tipo de surdez que tinha. Este tipo de surdez não está unicamente associado à incapacidade auditiva, como também à forma como o cérebro processa a informação para os ouvidos. No fundo, a médica garantiu-lhe que os implantes cocleares poderiam não trazer nenhum desenvolvimento, ou, então, iam piorar, ou melhorar os zumbidos. Ainda que conseguisse ouvir melhor a médica garantiu que não ia ter uma comunicação correcta. De que valia ter um implante coclear se a evolução não era garantida?
É difícil perder a audição de um dia para outro, mas igualmente difícil é ganhá-la no mesmo período de tempo. No caso dos implante coclear, a garantia é que os ouvidos funcionam, mas a adaptação de cada um a essa nova etapa é diferente. Depois da operação, há uma fase de recuperação e depois um período onde a pessoa tem que se adaptar aos novos sons que se aproximam – às vezes, pela primeira vez na vida e, para outras pessoas, pela segunda. O desejo de não fazer o implante coclear devia ser aceite, sem serem julgados. Uma coisa é certa, John F. Kennedy perdeu a audição, mas não morreu por essa deficiência e Beethoven era surdo e hoje em dia é um dos compositores mais famosos de música clássica.
Se ficaram interessados, aconselho a ver este documentário (Hear and Now) que descreve como um casal de surdos de 65 anos, pode de um dia para outro passar a ouvir. Porque vale a pena continuar a ser surdo? Quais as repercussões que trazem os implante cocleares? Como se adaptam os filhos (não surdos) de país surdos? Não percam!