Muitos são os meus sapatos

Nasceu algures um conceito de que a pessoa verdadeiramente equilibrada e feliz tem de ser calma, centrada, pacífica, conectada com o seu ser interior e despojada de todos os bens supérfluos, limitada ao que realmente é verdadeiro e essencial.

Terá de mergulhar entre agitados e desafiantes conflitos que surjam, cheia de força e perseverança, em pura perfeição.

Nesta busca exacerbada de ideal, logo se criam outros conflitos. Porque esta pessoa cheia de perfeccionismos não existe. Todos os dias carrega os próprios chicotes e não se permite errar, desacertar, fazer ou dizer tolices. Nós e o mundo estamos demasiado ocupados em apontar-nos o dedo pelo facto de sermos somente humanos.

Por outro lado, existe também uma ténue imagem de que não nos devemos ligar aos bens materiais, à auto-imagem, ao supérfluo, sobre o preço demasiado pesado de nos associarem a pessoas consumistas, descartáveis, supérfluas.

Afinal onde existe o equilíbrio em tudo isto? Quando é que se passa de feliz consumidor a decadente cabeça de vento?

O mundo está cheio de estranhas dicotomias e polaridades. Ou é quente ou é frio. Triste ou alegre. Mau ou bom. Esquecemo-nos que o equilíbrio, novamente esta noção de equilíbrio, passa por experienciar tudo o que existe. Não só as emoções ou a magnífica linguagem da alma. Mas também o material. O palpável. O terreno.

Não existe nada de errado em sonharmos com a casa dos nossos sonhos com todas as cores onde gostaríamos de viver. Nem nada de incorrecto em espelharmos no mundo a nossa imagem externa cheia de estilo. Sentirmo-nos bem, bonitos e rodearmo-nos de beleza. A dicotomia é exactamente esta, a alma também se experiencia através de termos coisas, adquirirmos coisas.

O desafio, porém, é outro. Compramos para ter só por ter, para preencher vazios ou para vivermos o que nos faz ser felizes? Consumimos para mostrar aos outros ou porque através do que compramos nos conhecemos, nos exprimimos, nos conhecemos através dos nossos desejos?

Aparentemente ninguém nos virá salvar e muito menos coisa alguma que possa estar numa estante de loja, mas a frase de ordem é simples: ser feliz é tudo o que nos faz sentir bem. Em último caso, que nos complete e seja uma expressão aos nossos olhos e, por consequência, aos olhos dos outros.

No meu caso, gosto de sapatos. De várias cores, formatos, feitios. Gostaria que fossem muitos. Não o são. Ainda. A questão financeira e a minha opinião sobre ela, para quem tenha paciência de a ler, seriam outro desafio para outras linhas.

Contudo, os meus sapatos preenchem-me. Quando caminho com eles e os escolho e calço com a devida disposição, só me mostram e aos outros sapatos que se cruzam com os meus, um pouquinho de quem eu sou, de como me sinto e do que eu gostaria de dar e aprender. E ajudam-me a caminhar em direcção a tudo o resto, aos verdadeiros desafios que me impus.

A vida é provocadora e ainda bem. Tudo o que se pensa, faz, sente, nada mais é senão aquilo que somos e a nossa capacidade eterna de reinvenção. Através de todas as coisas.

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