Tétis acordou de madrugada. A raça da criança às voltas no ventre proeminente arrancou-a do leito!
Lá vai ela, sem nunca haver visto um pinguim, arrastando os pés inchados terraço fora, 100/120.
A iminente chegada de um filho, desde tempos bem mais distantes que estes da Grécia Antiga (que para ela são a mera Atualidade), vem sempre embrulhada num misto de ansiedade, alegria, esperança e medo. E é perdida nestes pensamentos que ouvimos os receios ditos em voz alta naquela madrugada: “E se me nasce rapaz? Da maneira que isto anda, vai que me falece numa guerra!”
– Ai, menina, não se aflija! – sussurra a escrava mais velha da casa, sábia e confidente acocorada ao fundo do pátio a passar o mármore a pano. Sabe, o Estige…?
– O rio?
– Isso! Diz que se a menina lá for pela fresca e banhar a criança quando nascer, se for rapaz há de torná-lo invulnerável.
– Isso agora! E se for rapariga?
– Se for rapariga, fica só lavadinha. Não dá para agradar a gregos e troianos!
– Menos mal, que não se perde o passeio e sempre se poupa em cântaros para cima e para baixo.
Vai Tétis atravessando de volta o terraço e deita-se ao lado de Peleu que continua a dormir sem preocupações.
3 noites se passam, 2 pés desincham e uma barriga liberta o herdeiro! Sempre seria rapaz. “Prante-lhe Aquiles que é decentezinho e não envergonha ninguém!” E assim ficou.
Canja comida e sandálias novas, sai Tétis naquela manhã com o ai-dos-seus-olhos nos braços.
Na margem do Estige, despe o bebé e como era meia parva e a outra metade bruta em vez de poisar gentilmente à tona o menino de costas e embalá-lo nas águas, pega-o pelo tornozelo e batiza-o como quem escalda o polvo splash, splash antes de enfiá-lo na panela!
Haveria de traumatizar a criancinha, coitadinha, mais uma série de vezes nestas idas ao rio até que o processo ficasse completo. Agarra-o pelo tornozelo, mergulha-o para ficar bem protegido. Quem visse a cena mais lhe pareceria que estava a fazer uma vela. Mergulha na cera líquida e levanta, sacode, mergulha na cera líquida, levanta e sacode…
Consta que o desgraçado já quase andava quando ela parou. Parou porque o moço gatinhava com vontade dali para fora e como já tinha dentinhos a coisa apresentava-se perigosa de manter.
Cresce Aquiles em força, beleza e vivacidade. Homem de extremos, era capaz das mais belas demonstrações de carinho e dos mais violentos arremessos de punho. Não há de ter ajudado muito ser educado por um Centauro. Metade homem, metade cavalo, Quíron era um Professor temperamental e detentor de calduços épicos!
Mas Aquiles queria Mundo. A Grécia era demasiado pequena para tanto swag. E, com Troia ali ao lado, cheia de sol, praia, cocktails e inglesas (espera, isso é a outra, esta não tem inglesas… ainda), era bem pensado ir lá conquistar aquilo e anexar à Grécia!
Se bem pensou, melhor o fez. Arco e flecha a tiracolo e a imortalidade pelo corpinho todo, segue formoso e seguro, Aquiles pela verdura.
Escrevem os poetas e cantam bardos as epopeias por ele vividas. Guiando um exército, e desbravando as águas com cinquenta navios oferecidos pelo pai Peleu, espalha pecinhas coloridas no tabuleiro do “Risco” e vai batalhando com vigor. Os seus feitos precedem-no e não há quem não conheça Aquiles. Para cada 10 que o admiram, outros 10 o invejam e um punhado deles está disposto a fazer-lhe “a folha”.
Quem foi à guerra e deu tanto certo seria que recebesse de volta mais cedo ou mais tarde. Mas Aquiles, escudado pelas imersões no Estige (“Abençoada mãezinha!”) foi escapando entre os pingos da chuva…
Nas contendas que foi somando amealhou os inimigos da praxe. Os que morriam já mais nada podiam fazer, mas os que ficavam, os pais, irmãos e amigos desses, gente que guardava rancor, alinhavam-se para a desforra, a vingança. Entre eles contava-se Páris, irmão de Heitor.
Flashback: Páris, que era um insaciável e arruaceiro, alguém que quando queria ia buscar, teima que quer Helena, mulher de Menelau, governante da cidade grega de Esparta. Se bem pensa e saliva, melhor faz e rapta a senhora (que por acaso, consta que nem deu muita luta, mas também podem ser más línguas e ter sido mesmo rapto. Vá-se lá saber!). Esta ação crê-se que tenha sido o rastilho que acendeu o barril para a Guerra de Troia.
Na guerra que havia de durar uma dezena de anos, Páris e o irmão Heitor lutaram destemidamente e havia de ser às mãos de Aquiles que Heitor pereceria. Cego pelo desejo de vingança pela morte do irmão, Páris fixa o alvo em Aquiles.
Cena final: campo de batalha
Evento: Guerra de Troia
O Deus Apolo estava fartinho da guerra que não atava nem desatava e decide intervir. Do paiol saca flechas envenenadas e entrega-as a Páris. Diz-lhe onde encontrar Aquiles e manda-o ir lá despachar aquilo.
Observando Aquiles no campo de batalha, de um ponto elevado, naquele final de tarde, Páris mira, estica a corda do arco, sustém a respiração e solta a flecha…
…sob o olhar atento de Apolo, qual Clint Eastwood para aquele Bradley Cooper da Antiguidade, o vingador disparou certeiro ao calcanhar de Aquiles.
O calcanhar! A parte do corpo que a mãe segurava durante os banhos forçados. A única parte que nunca recebia o toque da água protetora. A derradeira fragilidade daquele corpo indestrutível.
Se ao menos Tétis tivesse assistido a sessões pós-parto… saberia que os banhos não se dão assim à bruta!
RIP Aquiles sabendo que deste nome a um tendão humano.