Étienne Senancour, escritor e pensador francês do sec. XIX eternizou certa vez que “a coragem real é mais paciente que a audaciosa.” Se aos substantivos é permitido serem mais do que “palavras que designam seres ou coisas”, paciência e audácia há muito que se tornaram forma e conteúdo da vida de Michelle Bachelet, a primeira mulher eleita presidente na história republicana do Chile. Foi em 2006, depois de percorrido um longo caminho pautado pela sabedoria da espera, durante o qual foi Ministra da Saúde, entre 2000 e 2002, e posteriormente Ministra da Defesa, cargo nunca antes ocupado por uma mulher naquele país.
Muito antes, em 1975, Verónica Michelle Bachelet Jeria, nascida a 29 de Setembro de 1951, em Santigo, no Chile, foi presa, torturada e exilada, depois de dois anos na clandestinidade por apoio ao Partido Socialista, deposto no golpe militar de 11 de Setembro de 1973 – que colocou Augusto Pinochet no poder – e no qual o seu pai, general Alberto Bachelet, foi preso e torturado, acusado de “traição à pátria”. Morreu em 1974, devido às torturas sofridas. Bachelet acabaria por retornar ao Chile em 1979, onde se formou médica-cirurgiã pediatra, em 1982. Envolveu-se novamente na política, após a saída de Pinochet, em 1990, tendo exercido funções como assessora e Ministra nos Ministérios da Saúde e da Defesa, ao mesmo tempo que colaborava com ONGs de apoio a filhos de torturados e desaparecidos. Foi, aliás, durante a tutela da Defesa que a sua imagem se popularizou, facto para o qual em muito contribui a sua aparição em cima de um tanque a comandar as operações de resgate, durante inundações no sector norte de Santiago. Naquele dia, segundo os críticos, nasceu o “fenómeno Bachelet”, embora muito poucos imaginassem que aquela mulher em cima do tanque se tornaria a primeira presidente do Chile.
Em 2006, na segunda volta pela presidência do Chile, obtém 53,5% dos votos contra 46,5% de Sebastián Piñera, convertendo-se na primeira presidente do seu país e a sexta na América Latina. Quando assumiu o poder, Bachelet constituiu um governo com 20 ministros: dez homens e dez mulheres, uma paridade de género nunca antes tentada por um presidente chileno. Outra das suas medidas foi a implementação do acesso gratuito ao sistema de saúde público, a maiores de 60 anos. Contudo, o seu governo foi, desde muito cedo, pautado por contestações. Em Abril de 2006, mais de 100 mil estudantes manifestaram-se por melhorias na Educação. Exigiam transporte escolar gratuito, a implementação de uma prova de selecção universitária e reformas no programa curricular. Logo de seguida, a popularidade do seu Governo foi amplamente abalada, por causa de um sistema de transporte público que se tornou caótico, levando críticos a retratá-la como “um autocarro municipal em direção a um precipício”.
Michelle Bachelet governou até 2010, tendo terminado o seu mandato com alto índice de popularidade, não se tendo, no entanto, recandidatado, porque a Constituição Chilena (herdada da ditadura militar de Augusto Pinochet) não o permitia. A mesma Constituição que Bachelet, agora reeleita nas presidenciais de 15 de Dezembro, quer substituir. A actual Constituição (que só pode ser alterada com o apoio de dois terços dos legisladores) limita a actuação dos políticos e a ingerência do Estado na economia, que foi privatizada, durante o regime de Pinochet.
Decidida a impulsionar grandes mudanças num país agora menos tolerante com as desigualdades, muito pelas medidas por si implementadas no primeiro mandato, a presidente chilena já desperta críticas severas da direita, nomeadamente no que diz respeito à intenção de garantir a educação gratuita e de qualidade e aumentar os impostos das empresas de 20 para 25%. Bachelet pretende executar uma reforma tributária, para aumentar os impostos às empresas e aos mais ricos, obtendo, assim, recursos para financiar as reformas sociais, entre elas a do sistema educativo – no Chile, as universidades são todas pagas (inclusive as públicas) e quem não tem dinheiro para financiar os estudos pode pedir um empréstimo, mas acaba por terminar os estudos académicos já endividado.
Michelle Bachelet, como tantas outras personalidades históricas, não é unânime nas opiniões que vai gerando, mas, já o diz a sabedoria popular, “nem Cristo agradou a todos” e o sufrágio democrático colocou-a novamente à frente do país que, em tempos idos, foi obrigada a abandonar. “Agora o Chile olhou para si mesmo e decidiu que é momento de iniciar transformações profundas. A vitória desta jornada (…) é um sonho colectivo que triunfa”, declarou no discurso da sua reeleição, numa nova caminhada que agora inicia.