A Jamaica do Seixal

Na década de oitenta do passado século, uma obra entrada em falência, é deixada ao abandono na esperança de ser recuperada. Os prédios, construídos em altura, não chegaram a ser terminados. As estruturas em tijolo podem parecer muito decorativas e neo-qualquer coisa, mas na verdade foi o reduto que muitas pessoas, cerca de mil e trezentas, encontraram para ter o que habitualmente se chama de tecto.

Com a construção da rede viária do concelho e a abertura de novas vias, nomeadamente o acesso ao que hoje é o complexo do Rio Sul, as casas de madeira que se encontravam na mata que foi desbastada foram todas demolidas e os seus moradores buscaram abrigo nessas torres inóspitas que os acolheram sem ruído. Sem condições mínimas de segurança, habitabilidade ou salubridade, gentes de origens diversas construíram os seus lares em andares que sofreram adaptações para os acolher.

Inicialmente era local de encontro dos mais jovens que usavam como zona de convívio depois das aulas ou em vez delas. Era o tempo dos skates e todos queriam ser craques por isso aquele local tinha todas as condições para essa prática. Ninguém morava lá a não ser a tristeza do abandono. A rua acabava ali e a seguir o que havia era uma mata que servia de zona de aventuras para os mais novos e acolhimento para os mais necessitados.

O nome terá sido originado pelos ritmos ouvidos com frequência e pela livre circulação de certos produtos ilegais quer eram consumidos por inúmeros que os promoviam livremente. No entanto, tudo isto foi antes de haver pessoas a morarem em prédios nus e crus. Criou-se um estigma de criminalidade e marginalidade que colocou todos estes habitantes numa situação ainda mais precária que as próprias condições das residências. A rede de saneamento era praticamente nula e somente o improviso permitiu que a vida não fosse tão selvagem e agreste como se poderia apresentar.

Sem noção da capacidade de suporte da estrutura e da sua sustentabilidade, os andares foram adulterados colocando em risco a permanência dos seus moradores. O problema tem sido mais que debatido, mas arrasta-se, como um jogo de pingue-pongue, onde as responsabilidades são empurradas para entidades diversas. O certo é que se prolonga há tempo demasiado sem que a luz final seja encontrada. E certamente que várias gerações sabem o que este problema gigante significa.

Criando uma espécie de gueto, as línguas faladas são de origem portuguesa, mas ganham dimensões culturais bem diferentes. Grande parte das crianças nascidas no bairro só têm um primeiro contacto com a língua portuguesa quando são colocadas a frequentar o ensino primário. As enormes dificuldades de comunicação são acrescidas e os maus hábitos tornam-se práticas comuns. Um desafio para todos que pretendem uma integração digna e correcta na sociedade de hoje. Lutar contra a corrente é sempre um desafio tremendo.

Propriedade de uma entidade privada, os imóveis foram vendidos no ano 2000, no âmbito do processo de liquidação da massa insolvente da anterior empresa que se viu forçada a abandonar a obra iniciada. Após várias tentativas falhadas para se encontrar solução para o assunto, finalmente uma delas foi colocada em prática pela urgência do caso. A torre de bloco 10 foi desocupada e os moradores realojados em casas que a câmara disponibilizou para o efeito.

Tudo isto implicou um enorme esforço camarário que também disponibilizou ajuda para as respectivas mudanças. Um processo que foi acompanhado pelos técnicos responsáveis bem como outras entidades envolvidas. O início do fim do prédio teve honras de estado com a presença do Presidente da edilidade e do Primeiro Ministro que assistiram aos trabalhos de derrube. Toda a zona envolvente foi cercada e vigiada, o que se torna irónico. Uma zona clandestina acabou por se tornar num género de condomínio privado.

A ideia principal foi mostrar que o assunto terá continuidade e que serão envidados todos os esforços no sentido de resolver a situação. Claro que deste modo não se correrá o risco de haver novas ocupações, o que seria um problema acrescido e permitiria que o caso se tornasse endémico. Contudo, as críticas não se fizeram esperar. Os mesmo que clamavam contra o bairro são os que se revoltam contra o seu fim, o que prova que a insatisfação faz parte do espírito humano.

Casos como este, são sempre polémicos e suscitam inúmeras e variadas opiniões. Viver em condições degradadas não é sistema para ninguém e se se viram obrigados a tal terá sido como forma de recurso, de minimizar o que de negativo tinham as chamadas barracas que haviam improvisado como modo de criar uma habitação. Respostas perfeitas não existem e a nível de satisfação será sempre relativo. Como em tudo na vida.

Com esta saída, 187 pessoas registadas, 64 famílias, encontraram uma outra forma de vida e melhores condições para a viver. A torre em questão está a ser desmantelada com alguma lentidão para que a estrutura das outras, que lhe são adjacentes, não fiquem mais danificadas do que já estão. O realojamento irá prosseguir pois todo o local será desmantelado e limpo numa atitude que só peca por tardia. E o mais estanho é que nenhum governo se interessou pelo assunto.

Nos últimos dias, este local tem sido palco de várias ocorrências. São poucos os que sabem o que terá despoletado tudo e que foi uma chamada telefónica, no dia 20 de Janeiro, solicitando auxílio à força policial. O resto, uma parte da situação, relatada em vídeo partilhado, que alguém estrategicamente filmou, passou a ser viral e interpretado conforme convinha a cada facção. O certo é que se transformou no efeito da bola de neve e agora está com uma dimensão de tal modo exagerada que nada voltará a ser como antes.

Os políticos, que até à data ou reviravam os olhos ou viraram as costas ou ainda apenas ignoraram a sua existência, passaram, num momento musculado, à linha da frente mostrando um interesse pouco genuíno com esta questão. É o novo peluche político e não há quem não manifeste a sua opinião sobre uma realidade que desconhece. Estamos em ano de eleições e convêm ficar sempre bem na fotografia. Afinal é de pessoas que se trata e não de votos.

Se estão à espera de ser recompensados com este súbito interesse podem esquecer o sonho e cair na realidade. Estas pessoas fazem parte do enorme grupo que dá pelo nome de abstenção, ou seja, não votam. Outras, mesmo que queiram, nem o podem fazer pois são ilegais. Estas atitudes paternalistas não convencem ninguém e correm o risco de deixar ficar um enorme amargo de boca. E escusam de se mostrar solidários, pois são muitas décadas deste cancro profundo que já devia ter aberto os olhos a muitos políticos.

Esta chaga social tem mais de trinta anos e agora, assim como que por milagre, tornou-se tema de conversa entre forças que decidem futuros, como se estivessem a fazer um mero jogo de monopólio ou da glória. Arriscam-se a sair manchados desta guerra que não é política, mas sim social. E escusa de vir o mais pintado dizer isto ou aquilo que o que todos querem é a situação resolvida e a recuperação da sua dignidade humana.

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