Somos o Esquecimento que Seremos

Há livros cujo nome ou a referência nos cai no colo por acaso, e uma vontade imperiosa de o ler nos contagia, ultrapassando a lista, em crescimento continuo, explícita, mental ou maleável, que vai engrossando o conjunto das “próximas leituras”, como se a vida que temos pela frente fosse infinita para a Literatura. Estranhamente, aceitamos a morte em diversas dimensões, mas nas listas literárias, continuamos a actuar como imortais. Talvez seja essa (mais) uma fantasia que nos ajuda a abraçar a vida.

Somos o Esquecimento que Seremos saltou para a frente da lista, qual prioritário na fila da caixa do supermercado, quando a Filipa me falou do livro que andava a ler. Pesquisei e, dada a edição portuguesa, da Quetzal, estar descontinuada, recorri ao OLX para obter um exemplar.

A história verídica do médico de saúde pública colombiano Héctor Abad Goméz e da sua luta contra as autoridades colombianas a favor dos direitos dos mais pobres, direitos humanos básicos como a saúde ou a educação, é um documento ao mesmo tempo histórico e profundamente humano sobre um país e o modo como a natureza humana consegue enfrentar o lado mais desonrado do poder.

Medellín, década de oitenta. Se hoje, quarenta anos depois, a Colômbia (ainda) não é um exemplo de respeito pela vida, pela segurança, droga, corrupção, etc… na altura a realidade era muito mais sinistra, com execuções sumárias feitas por esquadrões da morte, semi-oficiais (sobre alguns, nunca saberemos o grau de envolvimento das autoridades, a nível central ou local, bem como as cedências ao sub-mundo do crime, com a droga no topo da vergonha).

Abad Goméz deu o peito às balas e pagou cara a coragem de dedicação à causa pública. O filho, Héctor Abad Faciolince, anos depois dos acontecimentos, após deixar assentar o desgosto e libertar a raiva, resolveu prestar tributo a esse homem tão importante na sua vida. A sensibilidade que nos oferece com a sua escrita é comovente pela força imprimida ao relato, o pai-herói e a vida doméstica, as irmãs e a mãe, vidas construídas com amor e estraçalhadas pela brutalidade mais gratuita.

Pode um livro histórico fazer-nos chorar? Na verdade, este texto é difícil de qualificar: não é ficção nem é um documento histórico; talvez um testemunho pessoal sobre uma família, um país e um homem. Um homem que, de outro modo, se teria perdido no esquecimento, mas que ressuscita na evocação da memória do filho, num texto triste e comovente, mas também pungente de amor e de esperança. Pelo que deixamos. Talvez todos estejamos condenados ao esquecimento, para além dos rasgos que, aqui e ali, vamos fazendo no papel onde se vai escrevendo a história.

Li Somos o Esquecimento que Seremos com trinta e seis anos. Não há idade óptima para sermos tocados por uma obra, por outras vidas; há sim a possibilidade de continuarmos a crescer, a alimentar esta maravilhosa circunstância de irmos mudando continuamente; este livro foi mais uma fonte para esta maravilhosa reflexão.

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