Ele olhou à volta da tasca. O balcão de pedra, os amendoins no chão, os garrafões de vinho, as garrafas espalhadas, os chouriços pendurados. Em cima da mesa reparou num jornal. Sentou-se. A luz violeta por cima da porta estalou e mais uma mosca morreu. Sentiu-se sozinho. Sentiu que chegar ali tinha sido um grande erro cósmico, estrelas desalinhadas e irresponsáveis. Num canto do tecto, por cima de uma pequena televisão, estava uma teia de aranha. Ouviu o isqueiro para o lume e abriu o jornal. Já conhecia aquelas notícias, era de há dois dias. Engoliu a solidão.
“Não quer ver televisão?” o dono da tasca não esperou pela resposta dele e carregou nos botões do comando.
O telejornal e os seus políticos de estimação. Olhou para o ecrã sem ver, os olhos embaciados de quem escapou do mundo, de quem está dentro de si e se pergunta como é que os outros cavam os seus sonhos do meio da loucura, como é que conseguem.
“Ora aqui está” a sopa servida à sua frente. “E p’ra beber?”
“Um copo de vinho tinto, por favor” pediu.
“Bo’noite” entraram três homens que parecia terem acabado de sair da horta, com as mãos castanhas e as roupas suadas. Tiraram as boinas e mostraram uma testa bicolor. Observaram o desconhecido sem vergonha nenhuma. Cruzaram entendimentos uns com os outros e sentaram-se na mesa mais próxima à televisão. “Ti Joca, três copitos do costume!”
Nas notícias aparecia um qualquer país bombardeado, roto, destruído, tão longe que era impossível dizer o nome, realidades de sons que rebentam tímpanos, incomparáveis aos grilos lá fora. Um terror que nunca tinham tocado, nem sequer em sonhos. O Ti Joca distribuía copos de vinho pelas mesas.
“Estes países… é uma desgraça. Nós até que ‘tamos bem, apesar dos gatunos!” comentou um dos homens, o tom alto demais, como se quisesse meter conversa com o desconhecido. De vez em quando, lançavam-lhe olhares dissimulados que se notavam perfeitamente.
Ele não reagiu, levava a colher devagar à boca. Pensava que as pessoas – ele também – eram ridículas, com as suas liberdades fingidas, a acreditar que eram livres por poder decidir entre duas prisões distintas. Carregavam as obrigações às costas disfarçadas de escolhas – trabalho, compromissos, contas para pagar. Depois espiavam para os outos, aqueles que só tinham uma escolha, uma prisão (de certa forma menos enganados) e sentiam-se afortunados. Suspiravam, até, mesmo sem haver razão para aquele alívio. A maior cegueira humana – o homem acredita no que quer, não é verdade? E também ele se enganava.
Viu a sua cara na televisão enquanto levava uma colher de sopa à boca. Olhou com curiosidade. Ninguém o reconheceria: era uma fotografia de um menino de três anos. Havia mais de trinta anos, portanto. Ele contemplou o seu pequeno rosto como tantas vezes em álbuns de família, em fotografias espalhadas pela casa dos pais. Idênticos. Depois da imagem da criança, os jornalistas entrevistaram uma senhora com a cara vermelha de quem tinha estado muito tempo ao frio ou bebido muito, com pequenas veias roxas no nariz e nas bochechas. A mãe do menino desaparecido, diziam as legendas. Também aquela cara ele tinha visto muitas vezes.
“Já viram o caso deste cachopo? Há trinta anos, porra. Onde é que ele andará! Até me arrepia pensar que alguém poderia levar os meus netos, pá. Isto há gente que…”
Arrepiou-se e deixou a frase no ar. Não havia como descrever a possibilidade, a dor, o inominável. Nem sequer capaz de conceber isso no mesmo mundo, na mesma linha de destino que seguia. Apesar do tema, ele teve vontade de rir: os homens tinham ignorado os filhos, só tinham sentido esse medo pelos netos. Realmente, a vida é estranha e crua.
A senhora chorava. Chorava há trinta anos. Tinha o cabelo grisalho nas raízes, frisado e despenteado. As faces chupadas e as olheiras negras da doença e da dor. A expressão impregnada de um fogo apagado. Era uma mulher que previa morrer na dúvida, mesmo que lutasse com todas as suas forças para o negar, para se convencer do contrário. Sentia que estava a perder.
Ele levou a última colher de sopa à boca. Pensou na primeira vez que tinha visto aquela mulher na televisão, aquela fotografia da criança igual à que estava pendurada na sala. Perguntara aos pais, perguntara se era ele aquela criança. Os pais asseguraram que não, como podia ser? Recordaram-lhe as fotos da mãe grávida, dele recém-nascido, havia crianças muito parecidas, muito iguais, todos têm o seu sósia, não, não, não, não era ele. Ele nunca mais duvidara. Ignorava os rostos preocupados dos pais, que por vezes o espreitavam em silêncio, no ar o medo daquilo que ele podia pensar, indagar, temer. Confiava neles – as pessoas que o tinham criado, amado, que o tinham levado até à Disneyland, que o tinham ensinado a andar de bicicleta e soprado os joelhos esfolados, que lhe tinham aturado as neuras de adolescente e as promessas quebradas de adulto. Aquele menino desaparecido não era ele, não e não.
A mãe olhou directamente para a televisão, num novo apelo. O olhar inundado de bocadinhos do seu coração partido, o tom de voz que roçava o histerismo. Fazia trinta e dois anos que o filho tinha sido levado. Alguém sabia alguma coisa do José Paulo? Por favor, que alguém lhe dissesse onde estava o José Paulo.
Ele bebeu o vinho de um gole e pediu a conta. Perguntou ao Ti Joca se tinha um quarto para alugar ou se conhecia quem tivesse. O Ti Joca alugou-lhe um nas traseiras da tasca. Ele não se despediu dos desconhecidos, desapareceu deixando o dinheiro em cima do balcão. Não queria voltar a vê-los, a nenhum deles. Nem a ele próprio no seu reflexo, em espelhos mentirosos que nunca lhe dariam certezas sobre quem era. Não queria nada mais do mundo. Teve vontade de vomitar. Na boca do estômago, a solidão que apertava. Nos ossos, a dúvida que roía. Deitou-se vestido por cima da colcha branca surpreendentemente limpa e fechou os olhos com força. Mentiu-se com toda a força que tinha. Inventou que não se lembrava daquela mulher da televisão ainda jovem, a sorrir, a brincar com ele e a abraçá-lo. Era mentira, tudo mentira. Sim, também ele se enganava. Quiçá não soubesse mais qual era a verdade. Não, não e não.