Menos Verdades

Nas últimas crónicas neste espaço referi, por várias vezes, uma questão que, creio, é um dos maiores problemas do mundo actual, e com a qual nos estamos a debater através de várias situações, não só na nossa sociedade, como no nosso país e em nós mesmos. Todos os dias vemos expressões de uma filosofia de verdade absoluta, de não questionamento, de não esclarecimento, de crença cega e fechada, originada numa cultura de julgamento e crítica que esta vivência de “fast-food” tanto alimenta.

Todos os dias confrontamo-nos com esta epidemia, seja na vida real, quer nas redes sociais, mundo onde esta vivência é uma verdadeira epidemia. Regemos as nossas vidas pelas verdades que assimilamos, seja pelas mais diversas fontes, sem pensarmos sobre elas, sem questionarmos, sem equacionarmos seja o que for, simplesmente alimentamo-nos delas e acabamos, às vezes de forma surreal, a defendê-las como se fossem retiradas da nossa consciência, investigação e entendimento.

Acredito que as verdades absolutas são um caminho que nos irá, muito em breve, trazer uma factura muito pesada. Na realidade, os primeiros sinais começam a mostrar-se, através de diversas situações que têm ocorrido no mundo que nos rodeia. Contudo, acredito que nada é por acaso e que esta manifestação que temos vivido tem um enorme propósito, o de ganharmos consciência e o de nos apercebermos, na pele, do que a falta de discernimento, de esclarecimento, de discussão e crítica construtiva pode provocar.

Hoje, perante um qualquer acontecimento, uma comunidade levanta-se de pedras na mão, pronta a atacar, seja quem for, seja pelo que for. Estes são sinais duma barbárie instalada, fruto da falta de informação, da falta de educação, duma iliteracia patente em grande parte duma população escolarizada, mas que entrou na sociedade de informação e deixou o espírito crítico guardado na gaveta. Na realidade, a educação é, em última instância, o princípio e o fim do problema, pois é, em pressuposto, sob ela que crescemos e é dela que bebemos a vida durante tantos anos.

No entanto, somos nós, cada um de nós, que alimenta este comportamento, esta forma de estar, através das coisas mais simples, da falta de participação na própria vida, pois da vida em sociedade já estamos desligados há bastante tempo. Tornámo-nos tão egoístas que só vemos a nossa razão, o nosso orgulho, não podemos admitir que estamos errados, que nos enganámos, que pode ser doutra forma, que há outra visão. Fechámo-nos a nós mesmos, pois vivemos em suposta liberdade, de escolha, de expressão, de crença, e, por isso, nada nos impede de procurar informação, de ver os vários lados, de debater ideias. Contudo, numa sociedade competitiva, onde a única hipótese é sermos melhor que o outro, não se pode falhar.

Ainda que este pareça um cenário dantesco ou fatalista, a verdade é que a vida encarrega-se de nos mostrar o caminho, de nos colocar escolhas nas mãos, ao mesmo tempo que nos dá a consequência dessas mesmas decisões para assumirmos e trabalharmos. A culpa que se sente quando se percebe que o julgamento feito estava errado, tão simplesmente porque não lemos o artigo até ao fim, porque não procurámos mais factos, um dia destes passará dum simples apagar dum post ou dum comentário no Facebook para a responsabilização directa, a consequência, o peso duma justiça, seja ela dos homens ou de outro lado qualquer. Nesse momento, a bem ou a mal, teremos de olhar para a vida, para nós, para a sociedade, de forma diferente e fazer o trabalho de desconstrução, discussão séria e estruturada e consequente reforma das nossas estruturas, primeiro as pessoais, as individuais, para depois podermos fazer o mesmo trabalho na educação, na saúde, na política, nas relações internacionais e em tantos, tantos outros pontos que precisam de menos verdade e mais humanidade.

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