Madre Teresa de Calcutá dizia na sua humildade – que se manifestou até na sua anatomia – que aquilo que fazia na ajuda humanitária que providenciava era uma gota no meio do oceano. Abençoada gota. Os problemas não desaparecem. Os problemas nunca vão desaparecer neste ajuste e desajuste da ordem humana das coisas, mas se o horizonte for um maior equilíbrio dos polos e a minimização de contrastes – tão contemporaneamente agudizados – são estas gotas que importam.
As estatísticas que as análises fazem desumanizam os problemas. A fome de um não fica aconchegada por saber que há milhares como ele. Talvez a cabeça se apazigue na dormência de não se sentir só. Consolo! Ter fome é ter fome e a maioria de nós nunca a sentiu verdadeiramente: somos antes praticantes da gula que nos faz sentir parte deste mundo desenvolvido e nos enche de prazeres em medida de exagero. Primo Levi dizia, no seu (nosso) “Se Isto é um Homem”, que esse buraco no estômago, uma vez cavado, nunca mais desaparece, mesmo que se venha a comer toda a comida do banquete. Fica uma fome crónica para a posteridade. São as gotas que porventura interrompem a maleita, ainda aguda, antes de se fincar crónica. São as gotas.
Uma gota: projecto Skoola. Os intervenientes serão mais, mas a figura que sobressai é a da Mariana Duarte Silva, que parece saber agarrar empreitadas improváveis. Fundou o Village Underground, trazendo os contentores para a cidade, tornando-os espaços de partilha e criatividade, colados ao LX Factory, tão na moda nos últimos tempos (such a fancy thing). No Village, o éter é de rebeldia e preserva-se um certo espírito punk: ideais precisam-se. O modelo de negócio veio da city Londrina, onde Mariana havia trabalhado como agente musical, com especial relevância para os nomes feminino, tornando-se evidente a sua dedicação a causas – dar expressão a artistas mulheres no universo electrónico, onde a palavra DJ se diz ainda no masculino. Hoje menos, também graças a ela. Todo o Village é plantado em ambiente sonoro, agora com um lugar especial para os mais novos, onde se ensina a Música e se assume o seu papel como elemento agregador e constituinte de uma fase que pode ser tão determinante como a adolescência: “a música tem um papel fundamental na vida, no desenvolvimento e estruturação dos jovens”, como se pode ler no site da Skoola. Uma escola aberta que procura nivelar também pela atribuição de bolsas. Vale a pena conhecer este projecto que suporta e dá alegria com som. Para tornar a coisa ainda mais tendenciosa e interessante, só faltaria dar aulas de Filosofia aos miúdos e pô-los a pensar…. e não é que dá! Só uma gota, ritmada.
Outro projecto é o Café Joyeux, aberto na Calçada da Estrela, em Lisboa, no mês de Novembro, trazido de França, por Filipa Pinto Coelho. É um café que emprega pessoas portadoras de dificuldades intelectuais ou do desenvolvimento, como trissomia 21 ou autismo. Este projecto, com embrião na Associação Café com Vida, começa por ter um cariz social, cuja estrutura depende do apoio de empresas e mecenato, mas não parece pretender manter-se neste registo, antes equiparar-se a uma empresa, movida por resultados sustentáveis, libertando-se da dependência de ajudas externas. Aqui, os trabalhadores são formados e ensinados nas tarefas que devem desempenhar e sobretudo são estimulados a encontrar a sua autonomia, aliviando, na medida do possível, a cadeia de dependência que castra, demasiadas vezes, portador e família. São incentivados, entre outros, a serem independentes nas deslocações para o trabalho e serem responsáveis pelas tarefas que venham a assumir. Numa entrevista que ouvi com a responsável por este projecto em Portugal, ela mencionava a competência destas pessoas relativamente a tarefas rotineiras, dando o exemplo do primor na arrumação e limpeza dos talheres, o que será de grande mais valia para qualquer negócio de restauração. A proposta é dar um passo maior no acolhimento da diferença – não só aceitação. A caridadezinha sustenta a desnivelação, dando suporte a toda a cadeia de dependência (perdoem a repetição do termo, mas não há outro que melhor se adeque). Aqui quer-se olhar objectivamente para as competências destas pessoas a fazê-las valorizadas pelo mercado de trabalho, onde as tarefas desempenhadas não se vejam abrigadas por quotas e congéneres, mas sejam tidas como mais-valias. O caminho terá de se fazer também no sentido de educar a sociedade através do exemplo, de forma a que saibamos abraçar a diferença e reconhecer-lhe valor. Escolhamos bem os sítios onde tomamos o nosso café: ínfima gota.
Que oceano seria se por cada página escrita duas gotas houvesse para contar.
Ola Joana adorei o artigo, muito obrigada pela forma tão genuína como entende que este projeto quer mesmo ser gota cheia de força no oceano que é a vida de pessoas extraordinárias que simplesmente vive escondida de todos nós só porque da Mais trabalho pensar de um para um. Somos nós , como diz , quem também ganha com tudo isto, e somos nós que nós transformamos apenas com o simples contacto com estes corações puros e ansiosos de mostrar o que valem. . Que bom que é ver como a mensagem chega a quem tem ouvidos, olhos e coração atentos ao que pode fazer de facto o mundo ser um pouco melhor . Parabéns e bem-haja 😊. Quando puder dê por ca um salto!
Que bom Filipa! Agradeço o seu comentário, mas realmente o artigo só fala de dois projectos que merecem mesmo chegar ao conhecimento de mais gente. Muitos Parabéns a vocês que levam estes projectos a bom porto, mesmo sabendo que a empreitada é longa, pesada e, também por isso, muito gratificante. a Coragem está a tornar-se um bem raro e, por isso também, a aprecio tanto. Irei tomar vários cafés, com certeza!
até breve 🙂 Joana.
Lá a esperamos 🙂 Obrigada!