A literatura foi sempre veículo da denúncia de tensões sociais, embora a voz feminina tenha sido, durante séculos, silenciada e mantida fora do cânone quase exclusivamente masculino. Quando finalmente se fez ouvir, não trouxe apenas novas histórias, trouxe também uma questão que ainda hoje provoca debate:
Devemos falar de literatura feminina ou de literatura feminista?
A dúvida não é apenas semântica. Ela abre caminho para uma reflexão sobre autoria, intenção e receção. A literatura feminina nasce da escrita feita por mulheres, concentrando inevitavelmente a marca de uma experiência de género.
Por seu lado, a literatura feminista é movida por uma intencionalidade crítica, uma vontade de confrontar desigualdades e denunciar estruturas de poder. Uma é testemunho e afirmação de identidade, a outra, intervenção e resistência.
Recordemos Virginia Woolf como exemplo, em “Um Quarto que Seja Seu”, ela expõe a precariedade da condição feminina no meio literário. Trata-se de literatura feminina, porque é escrita por uma mulher que analisa a sua experiência. Mas, é também feminista, porque lança um manifesto contra a exclusão e a invisibilidade da condição mulher.
A autora mostra que estas fronteiras são permeáveis: muitas vezes, o feminino e o feminista coexistem na mesma página e nem sempre é fácil de identificarmos.
A autora Clarice Lispector já nos oferece outro caminho. A sua escrita intimista, centrada nas angústias existenciais, não procura ser bandeira ideológica. É literatura feminina, marcada pela interioridade e pela busca da palavra que nomeia o indizível.
No entanto, a simples ousadia de existir como autora, no Brasil de meados do século XX, acaba por ser, inevitavelmente, um gesto político. Aqui assistimos á ironia: mesmo quando não se quer feminista, a literatura escrita por mulheres é lida sob a lente do género.
Já Maria Teresa Horta, em Portugal, representa o gesto inverso: a intencionalidade militante da palavra. A sua poesia desafia interditos, denuncia violências e expõe a opressão com uma frontalidade que não se esconde atrás da estética. É literatura feminista no sentido pleno – escrita que combate, que exige, que se afirma perante todas as barreiras ideológicas, não pede licença para existir.
E hoje, em pleno século XXI? Encontramos uma pluralidade de vozes que parecem dissolver a oposição entre o feminino e o feminista. Autoras como Chimamanda Ngozi Adichie ou Margaret Atwood escrevem obras que são simultaneamente universais e ancoradas em questões de género, raça e poder. As suas respetivas obras “Americanah” ou “The Handmaid’s Tale” (O conto da Aia) não são apenas literatura de mulheres: são intervenções culturais que moldam debates sociais e políticos.
Talvez a grande conquista esteja aqui: as escritoras de hoje já não se sentem obrigadas a escolher entre a interioridade estética e a luta política. Os dois espaços podem coabitar ou serem rejeitados, sem que isso diminua a relevância da sua obra.
O rótulo torna-se insuficiente. O que antes se via como fronteira rígida revela-se agora como continuidade fluída.
No entanto, a pergunta persiste: respiramos hoje uma literatura mais feminina ou mais feminista? Talvez a resposta não esteja na obra em si, mas no olhar do leitor. Porque cada texto escrito por uma mulher carrega, quer queiramos, quer não, a tensão entre o íntimo e o político, entre a sensibilidade e a resistência.
O que ontem parecia oposição rígida, hoje surge como continuidade: a literatura feminina abriu caminho para a afirmação da autoria; a literatura feminista deu-lhe a força da denúncia e da transformação. E é nessa articulação que a escrita das mulheres encontra a sua respiração mais plena, ao mesmo tempo pessoal e universal.
A verdadeira conquista não é escolher entre rótulos, mas reconhecer que a literatura feita por mulheres já não precisa de legitimação externa. Ela respira por si mesma – ora como confidência, ora como manifesto, sempre como literatura.
A literatura escrita por mulheres não precisa de escolher entre ser feminina ou feminista: respira em ambos os espaços e conquista o seu destino maior – ser literatura plena.
Porque escrever e ler acompanham-se sem tempo.
Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico.