“É a economia, estúpido!” Esta frase tantas vezes dita e repetida foi uma expressão inventada por James Carville, especialista em marketing político, que em 1992 gizou uma estratégia com final feliz para a campanha presidencial de Bill Clinton, contra o incumbente George Bush, pai.
Estava-se em 1991 e o presidente dos Estados Unidos da América, George H. Bush, acabara de ganhar a Guerra do Golfo, resgatando a autoestima dos americanos, ainda não refeita com a derrota humilhante no Vietname. No verão desse mesmo ano era o favorito absoluto para as eleições, recolhendo nas sondagens uma taxa de aprovação de 90%. Contudo, o director de Marketing da campanha de Bill Clinton, quase desconhecido governador do Arkansas, apostou que George Bush não era invencível e lançou a frase que marcou um ponto de viragem definitivo na forma como os políticos mundiais passaram a abordar os eleitores. Com o país em recessão e o desemprego a aumentar, em Agosto de 1992 já 64% dos americanos tinham uma opinião negativa sobre o modo como o presidente conduzia os seus destinos e Bill Clintou acabou por vencer as eleições.
A ideia de que, para os cidadãos, é exclusivamente o rendimento disponível na carteira que realmente conta foi fazendo um caminho veloz e instalou-se comodamente no pensamento e no discurso político quotidiano. Conceitos como rentabilidade, produtividade, crescimento económico, eficácia e eficiência, conquistaram cada vez mais terreno à ideologia, ao espírito de missão, à justiça, à luta por uma causa ou um desígnio nacional. A economia e a gestão destronaram a filosofia e a ética, mas será apenas pela economia que se tem de reger a vida de todos?
O incremento da globalização e a influência gigante das multinacionais, dão ao mundo a configuração ilusória de ser um grande mercado mais ou menos aberto e os decisores políticos tendem cada vez mais a encarar os países como se fossem empresas, a considerar-se administradores das mesmas e a tratar os respectivos cidadãos como se fossem seus trabalhadores, preferencialmente com vínculos precários e direitos reduzidos. Tudo se deve subordinar à economia pois é estúpido quem pensa diferente.
Sucede que as empresas não constituem necessariamente espaços de decisão democrática, nem a lei as habilita, e bem, para a prossecução dessa finalidade. O objectivo último da empresa é a maximização do lucro e as decisões da administração não decorrem do voto dos trabalhadores. São, portanto, estruturas mais ágeis do que os órgãos de soberania de países democráticos e respondem perante os accionistas, sem necessidade de ouvir e considerar a voz do povo.
Com o fim da Guerra Fria e a queda da ditadura Soviética, parte do mundo alimentou o sonho de que uma vida boa, com crescimento económico, estabilidade, igualdade de oportunidades e bem-estar generalizado eram características de países com democracias liberais. Os regimes autoritários e as ditaduras não ofereciam exemplos de prosperidade e desenvolvimento assinalável.
A partir de 1979, a China iniciou uma reforma económica profunda, parcialmente assente em aspectos capitalistas, que fez dela uma das economias de crescimento mais acelerado e a maior exportadora do planeta. Em 1999, um acordo com os Estados Unidos abriu-lhe portas para a entrada na Organização Mundial do Comércio, permitindo que o país abrisse o seu mercado e expandisse as relações comerciais. E de maior exportadora passou igualmente a ser a maior fábrica do mundo, que para lá transferiu grande parte da sua indústria, procurando condições mais acessíveis e mão-de-obra barata.
A forte crise de 2007 iniciada nos EUA, que se estendeu nos anos seguintes à Europa e resto do mundo, alargou o fosso de desigualdades entre ricos e pobres, quase extinguindo a classe média e reforçou a já absurda repartição da riqueza, que se concentrou ainda mais num diminuto número de pessoas. Era a economia de mercado a comandar os destinos dos cidadãos, que não encontravam resposta para os seus problemas na actividade política deficiente daqueles que os representavam.
Os regimes autoritários, especialmente da Rússia e da China, começam, entretanto, a ganhar seguidores em partidos populistas à esquerda e à direita, que conseguem dar voz ao justificado e crescente descontentamento popular. As democracias deixam de ser o único farol da estabilidade e desenvolvimento e fortes movimentos sociais conseguem instalar no poder, especialmente na Europa e na América, tendências musculadas que procuram mitigar os regimes democráticos, em nome da moral, dos valores, da religião e do progresso.
A sociedade polariza-se, os discursos de ódio florescem, o debate plural de ideias e projectos padece do crescente “síndroma de trincheira” e, ao invés de cumprir o objectivo de trazer mais luz á discussão, acaba por redundar num combate sem utilidade, em que contendores se digladiam de forma competitiva, esgrimindo insultos e recorrendo a diversas formas de violência.
A digitalização e o mundo virtual em que diariamente mergulhamos facilitam o trabalho humano, mas criam desafios novos à organização do pensamento, ás relações interpessoais e ao desenvolvimento do modelo de sociedade que desejamos para viver.
A simples conversa frente a frente, olhos nos olhos, facilita aos intervenientes a interpretação da linguagem corporal e o desenvolvimento de uma atitude empática que a realidade virtual torna mais difícil. Num debate virtual cada uma das partes está perante si mesma, as suas convicções e preconceitos, entrincheirada em argumentos e orientada por algoritmos que lhe solicitam intervenção imediata, numa tentativa de ganhar a guerra a todo o custo, quando o pretendido deveria ser a mera partilha de opiniões.
Hoje estamos a transpor para a vida real o modelo de relação com o mundo que construímos na nossa aprendizagem virtual. Um modelo polarizado, de bons e maus, de vencedores e vencidos, de corruptos e salvadores, de preto e branco, onde os tons coloridos se esbatem ou desaparecem. Parece não haver espaço para a tolerância e começamos a entrar num círculo vicioso potenciador de extremismos, autoritarismos e ditaduras.
Somos animais dotados de instintos básicos como todos os outros. Porém, podemos aprender a controlar os menos aceitáveis, canalizando a energia que os alimenta para actividades socialmente aceites e que simultaneamente nos proporcionem satisfação ou prazer.
E neste caminho de sublimação é importante a aprendizagem da tolerância à frustração, algo que deve ocorrer desde a infância. Deste modo se fomenta a busca de formas alternativas, menos imediatas, de satisfação do princípio do prazer. Trabalho que para os pais não é tarefa fácil, dada a pouca disponibilidade que lhes resta para tal, numa sociedade com inúmeras solicitações.
Mas admitindo que o conseguem com êxito, eis que a oferta virtual nos dá a possibilidade de a quase tudo acedermos de imediato e à distância de um simples pressionar de botão. E lá se vai por água abaixo a delicada aprendizagem de sublimação de certos instintos básicos. No mundo virtual somos reis e senhores.
A possibilidade da resposta imediata ao estímulo a que o algoritmo virtual nos incentiva, limita-nos a reflexão crítica e a ponderação, necessários para tomadas de decisão adequadas. O imediatismo é inimigo da relação empática, que carece de tempo para se desenvolver. Ao invés disso estimula o comportamento ansioso, reforça o individualismo e a exaltação narcisista do Eu.
Que tem afinal esta conversa a ver com política e economia? Está tudo relacionado. A internet potenciou exponencialmente a globalização e em consequência contribuiu para o muito que encontramos de bom e de mau na sociedade actual. Será que precisamos acabar com a internet para defender a democracia? Não, mas parece-me necessário introduzir nas plataformas virtuais mecanismos que impeçam a resposta imediata. Sim, ao impedirmos uma resposta imediata a qualquer estímulo, estamos a dar ao nosso cérebro o distanciamento necessário á reflexão sobre o que nos é apresentado, seja uma compra online ou uma publicação nas redes sociais. E ao retardarmos essa resposta abrimos espaço para o desenvolvimento de competências que usualmente não alimentam comportamentos extremos e ajudam a sociedade a ser mais justa, democrática e solidária.
Em 1992 era a política que ganhava eleições em nome de argumentos económicos. Hoje é a economia que ganha eleições mascarando-se de política e socorrendo-se de estratégias alicerçadas no imediatismo virtual. E amanhã talvez queira mesmo prescindir dos empecilhos inerentes à democracia. O mundo transforma-se progressivamente numa enorme empresa multinacional digitalizada.