The Shackles of Limitations

Aïda Muluneh

Tenho andado um tanto desinteressada da Fotografia. Era uma forma de manifestação artística que sempre seduziu a minha atenção, mas nos últimos anos parecia-me não trazer nada de novo. Há e continuam a surgir boas fotografias, mas não prendem o observador, como prendem o olhar do fotógrafo.

Em modo totalmente amador sempre gostei de fotografar. Em (mais) miúda era a fotógrafa de serviço, começou cedo para salvar as cabeças que eram cortadas  pela falta de pontaria tão incompreensível de alguns familiares (desculpa, Mãe). Ainda gosto de fotografar, mas parece-me sobretudo um acto egoísta, que opera na minha – e só minha – interacção com o mundo, um tanto sôfrego, de querer guardar algum momento, alguma perspectiva, num clique. Como um namoro que se pode desenrolar a três: o objecto visado, o olhar de quem o quer captar e a lente, que promete a cada instante aceder ao objecto de uma forma nunca antes vista. Acontece que o que se apresenta tão espectacular antes se esfuma depois do clique. Há ali uma atmosfera nem sempre manifesta no resultado final e aquelas lutas, por vezes suadas,  com a técnica, a luz, o ângulo, nem sempre fazem o milagre.

O que quer o fotógrafo? Qual o seu propósito? O que queremos nós, quando fotografamos? Congelar para a eternidade algo que estamos a presenciar realmente? Sucedem-se muitas desilusões: a fotografia não faz jus à realidade. É difícil uma fotografia transcendê-la, como faz a pintura; o fotógrafo não se põe a criar cores e formas mais ou menos abstractas como faz o pintor, tem antes que as descobrir.  Regozijamos quando acontecem os sortilégios em que o clique se dá e, como por milagre, capta mais do que ali está. Depois, mais tarde, o observador consegue ver esse mais sem o ter presenciado. É raro. Por norma, a realidade mesma transcende a realidade fotografada, operando a várias dimensões, convocando o todo que a envolve. O grande fotógrafo, porventura, será esse que é capaz de invocar o que não se vê num plano bidimensional, o que convoca àquele instante fugaz do clique a profundidade que não é só espacial. O fotógrafo genial convoca a profundidade de espaço, de tempo e de espírito. Há uma dimensão etérea que deve estar presente para que uma fotografia seja Arte.

Não é como quem escreve, que pode aglutinar palavras na tentativa de fazer ver o seu ponto de vista, podendo ser desmedido na explicação. O fotógrafo não dispõe dessa lassidão. Mesmo com várias tentativas e ensaios e ajustes, há-de chegar ao momento definitivo em que escolhe o instante que vai ficar para a posteridade, marcando um passo no tempo que passou. Nos casos de acerto faz sentido ainda maior dizer que uma imagem vale mais que mil palavras. Sim, há imagens que só elas dariam azo a tratados. Muitas palavras se perfilariam  para sequer dar uma ideia do que ali se invoca, na imagem. Será também por esta razão que a crítica fica sempre aquém da obra, a crítica pouco acrescenta, a crítica é uma redundância subtraída e pobre.

Recentemente conheci o trabalho de uma fotógrafa que me voltou a prender como não acontecia há algum tempo. As suas fotografias hipnotizaram-me. Não são daquelas que se observam en passant, sem estabelecer laços com o observador. Prendem, convidam o olhar a procurar o detalhe, imprimem um choque de cor, sublevam a dimensão artística da fotografia. A profundidade. A profundidade. A profundidade que se manifesta na extensão de espaço que consegue captar e na expressão da arte como parte, parte de um Mundo que a precisa. As suas fotografias representam o que é, para mim, uma obra de arte: algo que, operando com os conceitos da estética e da beleza, nos interpela, nos questiona, nos tira do sítio onde estávamos antes de a contemplarmos. A arte não se faz só para fruirmos dela, mas para que, através desse deleite, em nós reconheçamos a nossa humanidade. A arte transforma-nos, se deixarmos.

Destaco da dita fotógrafa a série Water Life, de 2018, de uma nobreza e elegância tangíveis, com umas cores vivas e cativantes, tão belas, magnetizadoras da observação prolongada, que a beleza não se quer admirar num instante. E, tão belas, invocam uma realidade tão cruel como o difícil acesso à água potável em algumas regiões de África, sobretudo na Etiópia, de onde é originária Aïda Muluneh.  Tão belas, nos interpelam sobre a nossa complacência em relação a este e tantos outros assuntos. Tão belas nos acordam para um mundo que ainda teimamos em ver como não sendo nosso. Mas é.

Aïda Muluneh, trouxeste-me de volta à Fotografia.

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