“Sentires de mim” – o ruído do mundo em suspenso por Ana Maria Lopes

A poesia continua a ser minoritária. Ler poesia pressupõe, não uma especialização, mas uma hiperespecialização. Se Platão representava uma espécie de arquiopressor da poesia, poderemos enveredar pelo caminho contrário através da obra de Ana Maria Lopes.

Assistimos a um caminho em que a poesia se torna performativa e matéria de espetáculo. O entusiasmo coletivo, produto de uma tradição de oralidade e do que chamamos a narrativa, parece imbuir cada momento dos nossos dias. O storytelling, e todo o marketing indireto subjacente às iniciativas produtoras de variadas fontes de rendimentos e atribuição de subsídios, permitem-nos esquecer a poesia como ponto sensível da literatura.

Felizmente para todos os presentes, Ana Maria Lopes vem relembrar-nos o fulgor da construção poética. O livro “Sentires de mim” apresenta-nos a arte de uso da palavra como contraponto ao ruído atual:

Poesia

Libertando-se das amarras

De modas, de escolas

Ficou só e sem mestre

Ode, p. 152

A poesia de “Sentires de mim” situa-se à margem dos manifestos e das pressões para incorrer nas práticas autotélicas. O espaço poético é um espaço de refúgio, tantas vezes equiparado ao verdadeiro viver, e afasta-nos da alienação programática que toma conta da chamada poesia contemporânea. Premiamos os poemas mais próximos da narrativa, mas é da lírica o espaço de construção do sentido fora da mimese. Cremos mais no que podemos ver, tocar e experimentar, a narrativa mais próxima da vivência diária, e abandonamos o desconforto quando as formas fixas e o verso perdem centralidade e quebram os espartilhos de estilo e de tema.

Ao convite do eu lírico: Sê divindade (p. 18) poema Metamorfose, podemos sentir-nos tentados a responder com: “Não aprecio a poesia” ou “Não me especializei nesta área, por isso não me pronuncio sobre esta obra”. Mas será a leitura de poesia tão especializada que careça de um leitor crítico próprio? Ou será o afastamento, esse subalterno filho do pensamento convergente, a caraterística ausente da poética?

Os textos de pequena dimensão e potencial alegórico encontram-se fora do âmbito deste livro. Subsiste o momento percecionado e sentido pelo eu lírico enquanto ser renascido para a vida.

Quando eu transformar

A minha vida num poema

Tudo será mais fácil

Rosa, p. 73

Como transformar a vida num poema quando é apenas na prosa, no quotidiano, que todos parecem sentir-se autorizados a exercer a palavra e a participação? Trata-se da questão central da obra primeira por Ana Maria Lopes, uma estrutura sobre a qual poderá vir a erigir o seu projeto estético. Formular uma interpretação de um poema a partir de uma postulação contextual ou por meio da paráfrase pode ser discutível. No entanto, o postergar da vivência do eu lírico apenas se torna notório nessa busca de um silêncio relativo ao contexto de persuasão com que todos compactuamos.

Num silêncio que faz eco

Na poesia e nos sonhos

De rios submersos

Silêncio, p. 107

“Sentires de mim”, portanto, afasta-se do substrato mimético. Segundo Paulo Franchetti, toda a nossa tradição, desde Aristóteles, é fundada no drama. A ideia de imitação de ações é central. Por isso mesmo, à lírica sempre se reservou um lugar lateral. Na prosa, o mundo corresponde a um ponto de vista externo.

Mas a palavra é rude, nua e fria

Não soluça, não geme, não tem ais

Portos de vida, p. 43

Porém, o nosso eu lírico afasta-se de todas as formas de expressão narrativa porque A tristeza não combina

Com a pureza do papel

Escrever, p. 60

Aliás, os poemas de “Sentires de mim” podem ser considerados, pelos partidários da prosa e da mimese, como intimistas. São-nos apresentados sem plausabilidade narrativa. Talvez este lirismo tingido de expressividade afetiva não tenha procura por não se compadecer com a busca pela mimese vigente.

Nos meandros da construção poética, surge a necessidade de encontrar uma identidade:

Descalça em caminhos de laje

De tempo pálido

Logos, p. 47

Porquê este tempo pálido? Desprovido de significados que não são os da própria poesia e que se afastam da produção cultural mediada pelo utilitarismo e pela mercantilização da palavra. Aproximamo-nos das presenças, mais do que influências, nesta obra onde

Palavras doces

De esplendor

Em timbre alado

Cujo pórtico desgarrado

Ficou por decifrar

… resta a testemunha

Da ruína passada

O que é sonhada, lembrada

Olhares p. 31

Por isso, devemos afastar-nos do que é fácil, do que vende porque agrada às pessoas, desse espaço e procura de mimese que criámos na nossa forma de vivermos uns com os outros. Esse espaço e esse mundo onde os sentires não têm lugar, apenas a guerra e a negligência pela alteridade.

Ana Maria Lopes consegue estabelecer o diálogo com o público e oferecer uma voz pessoal, no meio da alienação programática. E sem conceder espaço ao espetáculo constante para o qual também na literatura hoje se apela como forma de adulação e conquista do público despreparado. Por isso, está de parabéns. Esta é a mensagem que o eu poético nos deixa como um desafio e uma possível reflexão:

Mas se a vida vem ter connosco

Porque a procuramos?!

Melodia, p. 85 (conclusão)

Nota: Este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico

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