“Sempre que publico um novo romance, as vendas de «O Nome da Rosa» sobem. Qual é a reacção? ‘Ah, um livro novo do Eco. Mas eu nunca li «O Nome da Rosa»’”. As palavras são do próprio Umberto Eco, numa entrevista ao jornal “The Guardian”, em 2011. O filósofo, linguista, semiólogo e escritor confessou, na mesma conversa, que por vezes odiava “O Nome da Rosa” – livro de ficção histórica lançado há 38 anos, que vendeu 10 milhões de cópias e que foi traduzido em 30 línguas. Talvez este best-seller não tenha sido o melhor livro de Eco, como o mesmo defendeu. Contudo, a fama que alcançou vai perdurar, com toda a certeza.

Foi precisamente graças ao “Nome da Rosa” que ouvi falar em Umberto Eco pela primeira vez. Não por causa do livro, mas sim através de uma adaptação da história ao cinema, com Sean Connery num dos principais papéis. Num momento em que nunca tinha lido as palavras de Eco, fui colocada perante uma manifestação do pensamento de um dos grandes intelectuais do século XX. A marca que me deixou foi a de ser um homem inteligente. Um homem que colocava o resto do mundo a reflectir sobre a falta de pensamento crítico no quotidiano.
A trama tinha uns laivos de Sherlock Holmes, num cenário medieval rico em pormenores de tradições, trajes e ambiente. Lembro-me de a tela me mostrar a Idade Média como um tempo verdadeiramente escuro, nas cores e nos ritos. Lembro-me de julgar a história como algo bem pensado. E lembro-me da análise à película que se seguiu na aula de Filosofia. O filme era, pois, pretexto para exercitar silogismos. Uma história suficientemente boa para desencadear umas quantas questões no teste de final de período…

Quando Umberto Eco morreu, a 19 de fevereiro de 2016, voltei a ser confrontada com a sua relevância. Com o falecimento anunciado já perto da hora de fecho das redacções, os jornais fizeram primeiramente uma pequena menção ao desaparecimento do italiano. Nas edições do dia seguinte, o autor surgiu nas capas, a sua vida preencheu páginas e o impacto do seu legado foi esmiuçado em colunas de opinião. Na universidade, alguns destes artigos serviram para me explicar técnicas de redacção de perfis e professores houve que exigiram pesquisa sobre as ideias de Eco, a fim de dinamizarem debates.
Em nenhum destes momentos senti simpatia pelo homem. Alguns jornalistas que privaram com o autor admitiram que a simpatia também não era uma característica declarada em Eco. Os relatos falam, antes, em riso fácil e boas doses de ironia. Assumindo que este último traço pode ser compreendido como uma manifestação de inteligência, eu senti, sim, admiração pelo intelectual e pela sagacidade da sua inteligência.
Reforcei estes sentimentos quando, mais recentemente, li o “Número Zero”, o último romance do autor. O livro é uma crítica ao jornalismo sensacionalista, à supressão de factos que podem abalar o poder, ao jogo entre a ética e a procura desenfreada por lucro, num enredo que mescla realidade e ficção.

Nele, retrata-se uma Itália do início dos anos 90, cujos problemas nas redações são aqueles de que ainda hoje ouvimos falar. Ao mesmo tempo, não se descura o desenvolvimento crescente das relações pessoais entre as personagens. E tudo isto leva um toque de mistério, com teorias da conspiração à mistura. O que é dito pode ser absolutamente falso, mas é totalmente credível. É esta uma das características que perpassa com mais vigor a obra de Umberto Eco.
Tal estratégia de narrativa levou críticos como James Wood a acusarem Eco de uma “banal leveza ‘faccional’”, em que os factos são apenas alterados, mas nunca chegam a atingir o patamar da ficção pura. Talvez seja esta a razão pela qual Eco nunca conseguiu envolver-me nos enredos que criou. O que me atrai na sua escrita é algo bem específico: o levantamento de questões em relação à sociedade em que vivemos.
À semelhança de muitas outras pessoas, tal como enunciou Eco, nunca li “O Nome da Rosa”. Mas a história de um livro tão famoso despertou-me o interesse pelas ideias do homem que a escreveu. Ideias essas que continuarão a ter impacto na forma como olhamos para a comunicação e para a cultura. Porque foi o lado de ensaísta do italiano que nos levou a reconhecer o papel do leitor na recriação de um texto. Porque foi esse mesmo lado a dividir-nos, pelo menos num plano teórico, em apocalípticos, defensores de uma alta-cultura, e integrados, que acolhem a massificação cultural sem questões. Porque, afinal de contas, Umberto Eco nos fez voltar os olhos para nós mesmos. Mas com uma visão renovada.