No jardim do meu prédio, a roseira voltou a despontar fora de tempo. Ainda é dezembro — quase janeiro — e as flores, impacientes, surgem como se a primavera se tivesse perdido no calendário. Falta o frio cortante de outros natais, a geada que riscava os vidros dos carros, o silêncio branco da neve em lugares onde antes era habitual. «É da mudança climática», comenta um vizinho ao passar. A frase sai-lhe como quem muda de canal na televisão: automática, gasta, inofensiva.
A expressão tornou-se um hábito linguístico. Repetida pelos media, muitas vezes com enquadramento superficial ou com uma linguagem técnica que cria distância emocional; o que antes era aviso urgente passou a ser fórmula de rotina. Dizemos «mudança climática» com a leveza de quem diz «bom dia» e, nessa banalidade, ocorre o esvaziamento semântico de duas palavras que, juntas, deviam carregar o peso de uma era. O resultado é estranho: quanto mais repetimos a expressão, menos profundamente a ouvimos. O clima altera-se, mas a palavra «mudança» parece ficar parada, suspensa numa neutralidade que já pouco alarma.
Entretanto, os sinais acumulam-se. O sol estende-se por novembro, visita prolongada, os incêndios lambem o país em maio, porque o verão tem pressa de chegar, e as estações já não se sucedem, aparecem, hesitantes, disfarçadas umas das outras. Nos campos, os agricultores improvisam soluções de plástico que duram apenas o suficiente para atravessar mais um ano incerto; nas cidades, o calor fora de época serve para lotar esplanadas e animar os turistas.
Falamos do clima, sim, mas para fazer conversa de café. Comentamos um temporal violento como quem comenta um resultado de futebol. No hipermercado, compramos um melão extemporâneo. E quando um desastre natural atravessa o noticiário, chamamos-lhe «fenómeno», como se o termo o tornasse mais distante, mais abstrato, mais desculpável. Normaliza-se a catástrofe.
A distância não é apenas geográfica, é semântica. A expressão «mudança climática» tornou-se demasiado grande para uma atenção demasiado pequena. Serve para tudo e, por isso, quase não serve para nada. Enquanto os cientistas descrevem pontos de não retorno e os políticos prometem metas para 2050, nós, apressados pelos demais problemas do dia a dia, deixamos que a escala deste assunto nos paralise. Preocupamo-nos com a bateria do telemóvel, com o preço da luz, com a chuva que, afinal, não veio, sem percebermos que a mudança climática é, de facto, isso. O planeta muda devagar, segundo o ritmo das eras; nós, depressa, segundo o ritmo frenético do quotidiano. É nesta discrepância temporal que se instala a ilusão: a de que ainda há tempo suficiente para não fazer nada agora.
Quando dizemos «mudança climática», imaginamos um fenómeno que acontece lá longe — nas calotes, nos oceanos, nos relatórios técnicos — e não aqui, na pele que reage pior ao calor, no ar que respiramos com esforço, no sabor que se perdeu de alguns alimentos. A maior parte de nós ainda tem dificuldades em perceber que as consequências não pertencem ao futuro longínquo; já se infiltraram nas nossas rotinas, mesmo quando não lhes damos nome.
Durante décadas ouvimos a frase «as estações já não são como antigamente». No início, soava a nostalgia; hoje, é diagnóstico. Talvez haja quem encontre uma beleza inquietante neste mundo em mutação, como quem observa um incêndio com fascínio involuntário. Não por prazer na catástrofe, pela consciência de que estamos a assistir a algo irreversível, algo que as gerações futuras hão de estudar como se fosse lenda: «Era uma vez um planeta azul».
E, no entanto, muitos de nós, ainda que, muitas vezes, em modo automático, praticamos um consumo consciente, reconhecemos a importância da participação local de grupos ativamente empenhados na resolução de pequenas-grandes questões, compreendemos a grande pressão política sustentada.
Contudo, se o clima muda, também pode mudar a forma como falamos dele. Aliás, essa mudança está inteiramente ao nosso alcance imediato. As palavras não são meros sinais; definem perceções, alertam para a ação. Há necessidade de recuperar o peso da expressão «mudança climática», de lhe retirar o automatismo e de lhe devolver a inquietação e a lucidez necessária. Sem nos esquecermos de que a mudança linguística é condição necessária, mas não suficiente.
Talvez, em janeiro, a roseira do meu jardim não floresça de novo. Talvez a geada regresse, discreta, às madrugadas. Um «talvez» que nos ilude e nos ajuda a lidar com a perda. Independentemente disso, ainda podemos deixar que a nossa linguagem reacenda a consciência do problema. Recuperar o sentido pleno das palavras significa recuperar a capacidade de agir. Ainda pode haver tempo: não para voltar atrás, mas para começar a dizer o que realmente está a acontecer. E, ao dizê-lo sem clichês, talvez comecemos, finalmente, a ouvi-lo.
Este artigo foi escrito segundo o novo acordo ortográfico.