Um mágico nas letras

‘‘Dentro de nós há uma coisa que não tem nome. Essa coisa é o que somos.’’ Há evidências que, por mais óbvias que possam parecer, só a maturidade, a experiência, ou a perspicácia podem descortinar. Fazer das mesmas evidências frase eterna já não é uma questão que esteja acessível a simples mortais. É algo que está unicamente destinado aos agraciados por uma força maior (acredite-se nela, ou não). Ele, o autor da frase inicial, não acreditava.

A sexta-feira quente daquele mês de Junho, soprada por um vento seco que se instalara na terra escura de Lanzarote, traria a propagação de uma das notícias mais impactantes, não só do cenário da literatura portuguesa, ou da sua sociedade, como mesmo da cena mundial – a morte de José Saramago  (um dos maiores escritores de sempre da literatura portuguesa, perdoe-se o parêntesis), aos 87 anos. Não há equívocos. Este não era nome de livro – como aquele que recorda O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, e um dos mais aclamados pela crítica, escrito por este homem que domou, com o passar dos anos, a arte de embalançar histórias e palavras –, mas até poderia ser.

‘‘Gosto de todas as minhas obras, mesmo que os críticos não gostem delas, pela mesma razão que um pai gosta de um filho, mesmo que o vizinho diga ‘que criança tão feia’’’, disse-o Saramago, ao magazine cultural da RTP – Acontece, da figura de Carlos Pinto Coelho. Era um homem simples, mas cheio, pleno de relevos, complexo, pode dizer-se, sem que se imponha um paradoxo. Afinal, torna-se assim por saber aprofundar como ninguém a sua simplicidade. Na gravação daquele programa, em 1999, recusou estar a passar pelo encantamento que podia ter sido provocado pelo prémio maior, o Nobel da Literatura, recebido um ano antes. ‘‘Se houvesse rescaldo, estava-se a apagar um incêndio – eu estou em pleno incêndio’’.

E estava. O incêndio que vivia era posto, frequentemente, aos olhos da sociedade, perante as suas perspectivas obstinadas sobre os problemas sociais, sobre a perda contínua dos valores que considerava indispensáveis à vivência mais pura e real para a balança do individualismo, do lucro impensado e do consumismo vazio. ‘‘A mim, às vezes, parece-me que o Homem não tem remédio e basta, repito, olhar o mundo para ficar com essa terrível impressão’’, refere. Havia também fogo, quando o tema era a Igreja e a Bíblia, sobre a qual escrevera desde sempre, cunhado particularmente em obras como O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), ou Caim (2009).  Na apresentação deste último, afirma que a Bíblia é “um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”. A crítica incrédula e o olhar irascível atingiram igualmente o Corão, quando Saramago questionou a certeza cega das pessoas, ao acreditarem que o Corão e a Bíblia eram de inspiração divina. ‘‘Francamente! Como? Que canal de comunicação tinham Maomé, ou os redactores da Bíblia, com Deus? Que lhes dizia ao ouvido? O que deviam escrever? É absurdo. Nós somos manipulados e enganados desde que nascemos”.

O desprezo por qualquer religião acompanhara gradualmente o caminho de José Saramago e a sua imagem de ateu inabalável, durante décadas. Convivia, ele, com a naturalidade de ser admirado por muitos pelo império literário que edificou (o Presidente da Real Academia Espanhola disse, a este nível, que Cervantes e Saramago eram os maiores mestres de sempre) e, ao mesmo tempo, crucificado por exercer, nas alturas em que achava considerável, o direito à liberdade de dizer o que pensava. Fê-lo incondicionalmente, sem sequer pensar em danos colaterais, nem em espíritos atordoados com semelhantes opiniões. A sua ira era, inúmeras vezes, centrada na figura de Jesus Cristo, de quem chegou a dizer que se tratava de um ‘‘filho da puta’’, representativo de uma religião opressora, que cultiva sentimentos como ódio e vingança. Não fica, assim, muito longe do seu olhar mais abrangente sobre a religiomania: “as religiões, todas elas, sem excepção, nunca serviram para aproximar e congregar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais”.

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A arte de escrever para o mundo da literatura não podia ser confundida com a mestria de se ensaiar textos para a sétima arte, defendia, recusando a ideia de querer que os seus livros ganhassem vida na tela. ‘‘Não gosto que as minhas personagens tenham rosto’’, disse uma vez, sem que, porém, evitasse a adaptação a cinema, com sucesso, de O Ensaio sobre a Cegueira, pela mão de Fernando Meirelles, realizador brasileiro. O filme, de 2008, cujo protagonismo ficou a cargo de Julianne Moore e Mark Ruffalo, é ‘‘duro, como tinha de ser’’e é, de igual forma, um reflector do pensamento de Saramago, que o escrevera em 1995, já a viver em Espanha, país que indirectamente desenhou outras controvérsias da sua vida. Foi para lá, para a ilha de Lanzarote, que o escritor se mudou, em 1993, aquando do arrastamento de controvérsias acerca de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, livro que fora retirado do concurso a Prémio Literário Europeu por António Sousa Lara, Ministro da Cultura do governo de então, que repetiu que se tratava de um livro que ‘‘não representava nem os portugueses, nem Portugal’’.

Agastado com aquela exclusão, José Saramago optou pelo exílio, na terra espanhola dos vulcões adormecidos. Não saíra, de todo, magoado com os portugueses, mas sentiu-se inegavelmente traído pela sua pátria, pela figura de homens ‘‘que mais queriam parecer a Inquisição’’. Numa entrevista dada ao Diário de Notícias, em 2007, elevou efectivamente a revolta, referindo acreditar que, no futuro, Portugal tornar-se-á uma província espanhola, sendo tal cenário, inclusivamente, o melhor para o País. Instalou-se mais a surpresa em Portugal, com tais palavras, que vieram a ganhar maior notoriedade no País vizinho, como tudo o que era acção do escritor, desde que era lá residente.

O passaporte emocional que guiara Saramago até Espanha foi certamente o capítulo mais importante da sua vida, acima de qualquer conquista, superior a qualquer contestação. Pilar del Rio, uma jovem e delgada jornalista e tradutora espanhola, até então uma desconhecida, era somente uma recém-admiradora da obra do escritor português, quando aterrou em Portugal, no ano de 1986. O propósito? Encontrar-se com José Saramago, depois de seguir as pisadas de uma caminhada descrita no livro O Ano da Morte de Ricardo Reis. Pilar deu por si a sentir que algo de verdadeiramente grandioso estava para lhe acontecer, ali, aos pés da estátua de Luís Vaz de Camões, no largo homónimo, em pleno Chiado.

O encontro fora efervescente e a própria confessou que o mesmo a deixou diferente, como que uma nova mulher, no regresso ao seu país. ‘‘Estava perplexa com a grandeza e inteligência de Saramago’’, homem que dizia ser de dimensão distinta, ‘‘um ser excepcional’’. Pilar não pensava em romance, mas não evitava a ansiedade que advinha da espera das respostas de Saramago. Mantiveram, depois daquele especial contacto, o espaço um do outro, por cartas, como tinha de ser, há vinte e sete anos atrás. Ele, o escritor, sabia que algo de verdadeiramente grandioso lhe tinha acontecido. Qual amor de perdição, não mais se largaram. Fins-de-semana a fio, ambos trocavam, à vez, o seu país, pelo seu destino, até deixarem as opções pelas prioridades, casando em 1988, dois anos depois do encontro, no Hotel Mundial.

Não podia ser, efectivamente, mais ajustado o nome próprio de uma mulher com a condição que a mesma tem para Saramago. Por diversas ocasiões, nos seus livros, ele presta o seu tributo, em palavras de transparente reconhecimento. “A Pilar que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar”, escreveu, por exemplo, em Pequenas Memórias, como dedicatória.  “Se eu tivesse morrido antes de te conhecer, Pilar, teria morrido sentindo-me muito mais velho. Aos 64 anos, a minha segunda vida começou. Não posso queixar-me”, viria também a referir numa entrevista ao New York Times. Partilhariam, entrelaçados, vinte e três anos de perfeita comunhão (mesmo ideológica – revendo ideais marxistas e comunistas), ainda que se lhes conseguisse vislumbrar algumas diferenças, como veio comentar Miguel Gonçalves Mendes, realizador do filme José e Pilar (2010), representante para o melhor filme/documentário estrangeiro – que, contudo, relevou (como era marca tão visível no documentário!) o respeito incondicional e o absoluto amor que nutriam um pelo outro.

Não será de estranhar que, perante uma vida de reivindicação pela verdade e pelos valores, Saramago (que também passou, depois do 25 de Abril, pelo posto de director-adjunto do Diário de Notícias) tenha encontrado a assunção pessoal ao terceiro casamento, como reconheceu Violante Saramago, sua filha, admitindo que o seu pai se tornara, após o feliz encontro com Pilar, uma pessoa “mais acessível, mais aberta, capaz de derramar os sentimentos e de abandonar a sua habitual atitude de defesa”. Pilar disse que tinham, a partir do momento em que se viram, criado um pacto para a vida. E esse não termina. Hoje, a sua eterna Pilar preside a Fundação a que Saramago emprestou o nome.

Amor de perdição, que nunca se esfumou, foi também aquele que cresceu consigo. A sua inatacável devoção pela língua portuguesa (e pela sua literatura) resistiu a todos os ataques que lhe foram disferidos. Era um sentimento enraizado , aquele que Saramago tinha pela sua língua, em toda a sua estrutura, tendo sido, também ele, um acérrimo crítico do novo Acordo Ortográfico, desabafando sempre que não mais se sentaria nos bancos de escola para aprender uma língua diferente. Foi, claro, para a literatura portuguesa que amplamente contribuiu, com todo o seu legado de dezassete obras, das quais se destacam o Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo ReisA Jangada de Pedra, O Evangelho Segundo Jesus Cristo ou o Ensaio sobre a Cegueira. Livros escritos ao longo de sessenta e dois anos (embora se tenha dedicado completamente à escrita apenas na década de 80, havendo antes disso somente três livros editados), a maior parte dos quais traduzidos em mais de trinta línguas e que se evidenciaram, sobretudo, por terem criado, em primeiro lugar, uma gramática nova e absolutamente diferente e, em segundo lugar, retratarem o engenho com que o autor consegue enfabular os seus densos raciocínios. Exactamente todo o amor que sentia conduziu-lhe ao Nobel. Era o destino e tornava-se claro que tinha de acreditar nessa fatalidade.

José de Sousa Saramago, nascido na espantosa década de 20, nas terras verdes da Azinhaga do Ribatejo, era simples, convém repetir. De um tempo duro, em que, na sua família, ‘‘se dormia com os porcos, na cama dos humanos’’. Escreveu, num dos seus livros, que ‘‘nem sempre os jovens sabem o que podem e os velhos podem o que sabem’’. Soube ele percorrer diligentemente os caminhos que se faziam diante da sua vista. Ora sinuosos, ora mais pacíficos, José soube beber da icástica filosofia de Fernando Pessoa, construindo um castelo inderrubável, com as pedras achadas nas desventuras. Só a uma não pôde fugir. Talvez aquela que considerava a mais bizarra e maldita. Não propriamente o deixar de ser, de existir, mas antes o deixar de estar. Foi a morte que o calou. Todavia o seu castelo está por toda a parte, é como que universal. Estruturalmente, está sediado em Lanzarote, onde, evidentemente, os relógios não marcam a hora do adeus, marcam antes a hora do encontro, da vida, da paixão, da sua Pilar.

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