Também não é a Ucrânia, claro. Por mais que esta guerra seja o foco das notícias (muitas vezes negado a outros conflitos) e por mais empatia que se tenha demonstrado, estamos afastados do perigo. Seja do perigo das bombas e armas na Ucrânia, seja do perigo de nos juntarmos aos (agora estimados) 13000 detidos na Rússia por protestarem contra a guerra. Se houvesse esse risco, provavelmente não me pediriam para escrever sobre o Putin como tema deste texto.
Acho que ninguém de relevo irá ler isto, por isso não estou tão preocupado com um café “com cheirinho” de Polónio 210 depois do cozido à portuguesa ali no Carvão, ou me juntar aos 155 jornalistas aos quais “aconteceu” morrerem de formas muito pouco naturais desde 2000 (contei na Wikipédia, admito, mas chega para o que queria ilustrar). Estou muito longe de ser jornalista. Na verdade, também estou muito longe de ser outras coisas, tais como como perito em política externa, em assuntos militares ou na história da Rússia e da Ucrânia (que não são a mesma). Nem sequer tenho o currículo do Putin em artes marciais (agora não reconhecido pelas instituições relevantes). Muito menos tenho uma formação tão específica como ele, porque isto de ser o menino querido da contrainformação no KGB dá uma estaleca invejável para a propaganda. Como disse «Tivemos de recuperar do nosso atraso em relação ao resto do mundo, mas tínhamos bases sólidas». Tão sólidas como um muro, o que permitiu criar um ecossistema digital sob o controle do Estado. É muito fácil fechar as portas à informação (e contra informação) ocidental quando a internet na Rússia sempre passou pelo buraco do Runet, o segmento russófono da Internet e os serviços que o compõem. O Yandex (com algoritmos do motor de busca de Arkadi Voloj que foram desde a origem calibrados para o russo) conserva na Rússia um grande avanço sobre o Google e o VKontakte ganha ao Facebook. Mais do que a censura que a China pode fazer à world wide web, o Governo russo tem uma internet própria. Aposto que ninguém vai achar este texto a pesquisar no Yandex.
Estou aqui, neste sítio mal-frequentado (afinal a citação é do José Cardoso Pires) e às vezes dou por mim a discutir com portugueses e brasileiros no Facebook sobre o que se passa na Ucrânia. O que me deveria chocar seria o desrespeito pela vida humana, mas percebo que provavelmente a distância ajuda. O facto de haver uma guerra civil localizada em parte do território com baixas durante 7 anos, também pode ajudar a relativizar a morte.
Contudo, nada disso muda o facto das pessoas estarem a morrer em jogos geo-políticos e dos generais do facebook estarem a partilhar memes mal amanhados para defender a sua equipa, sem pesarem os custos de uma guerra.
Chocam as certezas e as palas ideológicas. As certezas imensas. Primeiro, a de que Putin não iria além da região de Donbass, onde já tinha influência. Depois, a de que toda a população ucraniana iria receber os russos como heróis. Que o país não existe e é parte da URSS… perdão, da Rússia (que é como quem diz, do Putin). Acho que a “operação militar especial” está a correr tão mal porque o Putin acreditou nisso (e agora despromove e prende os seus conselheiros).
Putin diz querer a “desmilitarização e a desnazificação do Estado ucraniano” como se o Batalhão Azov fosse governo, quando politicamente é irrelevante. Como se o Batalhão representasse 45 milhões de ucranianos em vez de serem uns estimados 2000 em 2017, 2% do exército. Provavelmente, devido à invasão, as suas fileiras aumentaram com a radicalização de novos recrutas, mas no máximo dezenas. Como se a Rússia, Polónia, Ucrânia, América e nós não tivéssemos uma cota parte de neo-nazis, que se gostam de vestir de camuflado, e que só quer uma desculpa para se rodear exclusivamente do sexo masculino e empunhar símbolos fálicos. Ainda as certezas e empolgação que vem da desinformação, na qual só existem os vídeos dos russos a tombar do céu ou tanques destruídos, sem nunca falar das baixas do lado ucraniano. E os dogmas de algumas pessoas que torcem pela Ucrânia (ou contra a Rússia) e vão buscar todos os vídeos, fotos e histórias que lhes pareçam ter potencial viral, para as distorcerem e adaptarem aos seus desejos, sendo espalhadas por gente que as partilha sem usar espírito crítico.
Porém, o Putin desperta algumas paixões “positivas”. Para alguns, como Trump, Bolsonaro e Salvini, Putin é o líder de punho de ferro que eles gostariam de ser. Putin por sua vez nunca se revela. Provavelmente será mais inspirado pelos czares do que qualquer líder político da história recente. Felizmente os czares nunca tiveram armas nucleares, porque preocupação com o povo também nunca tiveram.
É uma situação desesperante ter um país a ser esmagado lentamente e um planeta a um passo de uma guerra nuclear, que não irá poupar um canto do planeta. Talvez não cheguemos mesmo a ter tempo para sofrer com o aquecimento global. No entanto, choca também que, no meio dessas discussões, a Ucrânia muitas vezes já nem seja mencionada. Especialmente por aqueles que chamam a atenção de tantos interesses geopolíticos perfeitamente sórdidos que se possam invocar, ou que dizem que a Rússia se sente ameaçada, ou tem direito a ter países sob a sua esfera de influência. É só imperialismo, mas do lado do menino que já não é império. Coitada da mãe Rússia que é imensa, mas já não mete medo como metia na Guerra Fria. Já tem menos países que pode usar para jogar xadrez. A coisa na Síria e Crimeia até correu bem, vamos esticar a corda.
E a culpa é da NATO. Porque existe. Porque se estica. Porque mentiu aos russos que disseram que nunca iriam invadir a Ucrânia quando recuperaram as armas nucleares. Porque mandou mísseis contra a Ucrâ… Ups. Sim, a NATO. Sim, o Kosovo, sim Síria, Líbia, Afeganistão, Chade, Iêmen, Somália, Moçambique, Etiópia, Israel, Palestina, tudo isso são problemas, mas então a guerra na Ucrânia também.
E quando vejo as posições e discussões de certas pessoas, que normalmente nunca ouvem, consideram ou param sem declarar a sua “superioridade” aos que foram doutrinados, só penso num sketch de Monty Python. Mudar o que precisa de ser mudado. Não só o entender que Putin de comunista não tem nada, mas o que faz sentido para entender a perspectiva de muitas pessoas é o mudar “escumalha vermelha” e “malditos comunas” por “sacanas dos americanos” e acho que muita opinião controversa fica explicada. Apesar de ser Ucrânia e de ser Rússia. “This is not America (Sha, la, la, la, la)”.