Costumo afirmar que existem cidades que merecem muito a nossa visita, e depois encontramos aquelas cidades que nos visitam de volta, uma bonita memória que nunca se apaga.
A cidade São Petersburgo, na Federação Russa, pertence a essa categoria. Revela-se como uma mistura fascinante de grandiosidade imperial e de melancolia poética, algo que parece atravessar as águas do rio Neva e se instala em quem a observa pela primeira vez. O seu povo, numa vertente mais “pró-europeia” face a outras cidades russas que tive a oportunidade de conhecer, é, contudo, reservado, discreto e muito desconfiado em relação aos turistas. Neste território, onde a proximidade entre povos não é muito promovida, sente-se o estigma de conflitos beligerantes passados, cujo impacto moldou a sua civilização, mentalidade cultural e sociedade socioeconómica.
A minha primeira e única aventura em S. Petersburgo, anteriormente conhecida como Leningrado, a eterna pérola do Báltico, data de um verão luminoso e quente, quase de “canícula”, em pleno agosto. A viagem, de vários dias, foi realizada com duas amigas e incluiu a passagem por outras cidades do Báltico, como Helsínquia na Finlândia e Talinn na Estónia. Em S. Petersburgo, o sol recusa-se a pôr-se e as “Noites Brancas” transformam o céu num palco contínuo de luz dourada.
O primeiro impacto com a cidade foi de espanto e até de admiração. Deparamo-nos com avenidas largas, onde perdemos a noção do início ou fim, com a elegância de edifícios, alguns datados do século XIX, e com o reflexo dos palácios dos Czares sobre os canais. Tudo em São Petersburgo parece cuidadosamente desenhado para impressionar pela sua grandeza, como se a cidade quisesse constantemente recordar-nos que foi sonhada por um czar com ambições de eternidade.
Durante oito dias, mergulhei nessa atmosfera entre o esplendor e a introspeção. O Museu do Hermitage revelou-se o ponto alto, uma catedral da arte onde cada sala parece ter uma alma própria. Percorrer os corredores repletos de quadros de mestres como Rembrandt, Da Vinci e Caravaggio é como atravessar séculos de humanidade em silêncio. Aqui, senti a estranha sensação de me sentir tão pequena perante a grandiosidade das obras de arte que este museu apresenta – um enorme privilégio.
A visita à Igreja do Salvador sobre o Sangue Derramado, também conhecida como a Catedral da Ressurreição de Cristo, constitui um ponto cultural imprescindível. A sua impressionante fachada e a decoração, sobretudo de estilo barroco, proporcionam uma imagem inesquecível a reter na memória.
Conhecer o Palácio de Peterhof e as suas fontes, é quase imergir num monumento que se apresenta como uma das maiores joias arquitetónicas da Federação Russa.
Percorrer os seus jardins, mergulhar na história da família Romanov no interior do majestoso palácio e assistir à coreografia da dança das fontes de água, cujo dourado brilha sob o sol, é uma visita a não perder.
As ruas de São Petersburgo misturam simultaneamente nostalgia e vitalidade. Um passeio pela Avenida Nevsky Prospekt é um desfile de contrastes: cadeias de hotéis europeus, cafés modernos com música jazz, lojas de marcas premium, edifícios gloriosos que ainda guardam cicatrizes do passado soviético, e o constante murmúrio do trânsito que parece nunca descansar. A cidade concentra esta dualidade intrigante: um coração antigo que pulsa ao ritmo da modernidade pró-europeia.
Em S. Petersburgo, a sensação não é de estarmos em território russo, mas muito europeu, numa urbe que respira as tendências e mentalidades urbanas de um ocidente de abertura e de consensos.
Na gastronomia, embora não tenha sido uma fã real, encontrei outra forma de descobrir sabores, contrastes e cultura típica. Da sopa borsch, servida com creme azedo, aos pelmeni fumegantes (pequenos pastéis de massa fina recheados com carne picada), cada prato foi um convite à pausa. Comer em São Petersburgo não é apenas saciar a fome “cultural”, é participar num ritual de identidade ao experimentar sabores tão diferentes. A comida é densa e reconfortante, preparada para resistir ao frio – mesmo em pleno verão.
Contudo, o que mais me marcou foi a sensação constante de introspeção. São Petersburgo tem esta capacidade rara de nos obrigar a olhar para dentro do nosso “eu”. Talvez pela sua luz difusa, talvez pela sua história trágica e gloriosa, a cidade ensina que toda a beleza carrega uma sombra, e que é nesse contraste que reside a verdadeira emoção.
Ao fim de oito dias intensos de descobertas, de fortes emoções e de muito conhecimento cultural, parti com a sensação de ter deixado algo para trás – talvez um pedaço de mim própria. São Petersburgo é uma cidade que não se esgota numa primeira visita, mas que incita o pensamento de regressar num novo momento. Fica a ecoar no pensamento, como uma música que continua depois de o som se calar lentamente. Recomendo vivamente esta viagem para quem procura mais do que um simples passeio: para quem procura conhecimento cultural, redescobrir-se e encontrar respostas, como se de um espelho se tratasse.
Se pensarmos bem, viajar é isso mesmo: descobrir o mundo para este nos descobrir a nós. Deixo-vos com a citação muito a propósito do momento: “Para viajar basta existir” (Alberto Caeiro, heterónimo de Pessoa, in O Guardador de Rebanho, 1914).
Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico