Quem nunca testemunhou uma cena desconfortável num espaço público: uma criança chora, faz uma birra, e o adulto que a acompanha explode em gritos, ameaças ou até tapas. Não há quem não se abale — uns desviam o olhar, outros julgam em silêncio, alguns até acham que é “educar”. Mas se trocássemos os papéis, se fosse um adulto a perder o controle, alguém que desabasse em choro ou raiva no meio da rua, permitiríamos que fosse humilhado, insultado, ou agredido? Certamente não. Por que, então, aceitarmos isso com as crianças? O respeito não pode ser seletivo. Ele não escolhe idade, tamanho, força. O respeito é condição mínima para qualquer relação humana.
Muitos pais e mães carregam dentro de si as marcas da educação que receberam. Cresceram ouvindo que “foi assim que aprendi” ou “apanhei e sobrevivi”. O problema é que sobreviver não é o mesmo que viver em plenitude. O que se herdou como normalidade muitas vezes foi apenas dor silenciada. Quando não cuidamos dessas feridas, corremos o risco de repeti-las — e assim perpetuamos um ciclo que confunde medo com disciplina, silêncio com obediência, humilhação com respeito.
A ciência não deixa dúvidas. Meta-análises reunindo mais de 160 mil crianças mostram que punições físicas não produzem obediência duradoura, mas sim mais agressividade, problemas emocionais e pior relacionamento com os pais. A neurociência confirma: cada vez que uma criança é humilhada ou agredida, o cérebro ativa o mesmo sistema de alarme que dispara diante de um perigo real. O cortisol inunda um organismo ainda em formação, e o que deveria ser apenas um momento torna-se memória, marca, ferida biológica. O pediatra Jack Shonkoff, da Harvard University, chama a isso de estresse tóxico — uma condição que compromete o desenvolvimento emocional, a aprendizagem e até a saúde ao longo da vida.
Não é fácil ser pai ou mãe. Todos sabemos. Há dias em que a exaustão pesa mais do que a paciência, em que a nossa própria criança interior grita dentro de nós. Mas não é justo transferir esse peso para os ombros ainda frágeis dos filhos. É nossa responsabilidade curar as feridas herdadas, olhar para as dores que carregamos e dizer: “comigo esse ciclo termina”. Não se trata de romantizar a parentalidade. Haverá sempre birras, desafios, frustrações. Mas cada uma dessas situações é convite a ensinar autorregulação, empatia, confiança — valores que só se transmitem quando os praticamos.
E há alternativas. Programas de parentalidade baseados em evidências, como o Triple P – Positive Parenting Program (Universidade de Queensland) ou o Parenting for Lifelong Health (endorsado pela OMS e Unicef), têm mostrado resultados concretos: reduzem drasticamente o uso de violência física e verbal e fortalecem o vínculo familiar. A chamada disciplina positiva não significa ausência de limites, mas a construção de limites claros, aplicados com firmeza e afeto, nunca com medo. Significa substituir o castigo pelo diálogo, a exclusão pelo acolhimento, a humilhação pelo exemplo.
Falharemos, sim. Perderemos a paciência, diremos o que não deveríamos. Mas até nisso há lição: pedir desculpa a uma criança não nos diminui; ensina que todos erramos e que o respeito também se aprende com reparação.
Educar com respeito é plantar agora o adulto equilibrado de amanhã. É garantir que uma geração não precise passar a vida inteira tentando curar-se da infância. É entender que amor não é sinônimo de perfeição, mas de responsabilidade. Porque se um adulto em sofrimento merece cuidado e empatia, uma criança merece ainda mais — nela estão todos os futuros possíveis. E, se quisermos realmente um mundo melhor, precisamos começar pela forma como tratamos os mais pequenos. Não se trata de escolher entre permissividade e violência, mas de assumir que cada palavra dita, cada gesto feito, cada silêncio ou cada grito molda para sempre o mundo interior de alguém.
No fim, a escolha é nossa. Podemos repetir a dor que herdamos ou ser a geração que decide interromper o ciclo. Podemos erguer vozes que ferem ou vozes que ensinam. O que não podemos é esquecer: cada criança humilhada hoje é um adulto ferido amanhã. E cada criança respeitada hoje é a promessa de um futuro em que a dignidade não se pede, se oferece.
Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Português do Brasil.