Em 1930, Jan Weiss escrevia o livro A casa dos mil andares. A obra conta a história de uma sociedade em que o poder não pode ser destruído, porque ninguém sabe onde ele está. 87 anos depois do lançamento, a encenação deste texto é um objectivo de Pompeu José. Enquanto o sonho não se cumpre, o actor, encenador e animador cultural continua a percorrer localidades portuguesas, onde monta espectáculos na rua. Em 2017, aos 61 anos, o também director artístico da companhia Trigo Limpo teatro ACERT recebeu o prémio carreira de Produção Artística Teatro, atribuído pela Revista Anim’Arte.
Participou na iniciativa “Bocage na Rua”, declamando um poema. Os poetas podem também ser olhados como personagens de um teatro? Isto é, até que ponto os textos poéticos se aproximam dos textos teatrais, no que diz respeito ao conteúdo?
Penso que a poesia é a expressão da liberdade da linguagem, da palavra… é transgressora da normalidade, do normativo. Se calhar o poeta tem a personagem do louco no teatro da vida. Escreve levando a ver a realidade através de um caleidoscópio. O texto poético propõe imagens novas, obriga a ver de novo. O texto dramático propõe relações e acções, conta histórias através dessas acções e relações e tem, ele também, uma visão poética da realidade.
Com o monólogo “Em Memória ou a Vida Inteira Dentro de Mim”, a sua personagem esteve horas no palco a velar o corpo de um filho morto. Que trabalho esteve por trás da intensidade dramática a que deu vida?
A relação com a morte é permanente na nossa existência. A maior parte de nós come animais mortos, os elementos da nossa família vão morrendo no dia-a-dia. Mas estabelecemos uma normalidade nessas mortes, uma cadeia natural, vão uns, vêm outros. Neste monólogo, criado a partir do belíssimo romance de Vergílio Ferreira, Até ao fim, é um filho que morre e fica o pai. Isto rompe com a normalidade, com a cadeia natural, culpabiliza quem fica. Fui obrigado a fazer uma viagem interior que me aproximou daquele homem, que me levou a viver a mesma angústia, a mesma culpa, a perguntar-me vezes sem fim: o que é que eu fiz mal? Cresci bastante, como actor e como pessoa, ao interpretar este papel.
Qual é o maior desafio de se trabalhar um monólogo? Há algum receio especial por se pisar o palco sozinho?
O desafio é que a contracena, num monólogo, é contigo próprio e, nesta peça, também com o público. Há medo de estar sozinho em palco. Tanto, que eu propus que os dois cangalheiros, que entram em cena no princípio da peça, ficassem sentados com o público. Por coincidência, eles são os encenadores do espectáculo. Dá um conforto enorme saber que eles estão ali.
No caso dos monólogos, o cenário torna-se ainda mais importante para o ator na construção da história?
Neste monólogo, o espaço cénico foi essencial. Quando iniciámos a construção do espectáculo, achámos logo que a relação com o público tinha de ser de proximidade, não podia ser uma relação do palco com a plateia. Daí que o espectáculo é feito no palco com o público a fazer parte do cenário. Os espectadores estão no velório e sentem e vêem tudo o que o actor faz. É um bocadinho assustador, mas dá um gozo enorme.
Através da companhia Trigo Limpo, tem participado numa série de criações teatrais, cujos cenários são as ruas das cidades. Como é que as comunidades recebem este tipo de iniciativa?
O teatro está enraizado na memória colectiva. É fascinante chegar a uma localidade, por exemplo com o “Pequeno Grande Polegar”, e, à semelhança do circo no antigamente, começarmos a montar a marioneta gigante e as pessoas virem logo saber do que se trata. Ao fim de cinco dias, aquele menino já é deles também. A particularidade dos nossos espectáculos é que há participação comunitária das gentes da localidade, o que facilita muito a aceitação das comunidades.
No mesmo sentido de proximidade à população, colaborou com os carnavais de Aveiro e Ovar. O que é que o cativa nesta tradição de folia?
Como disse, o teatro está enraizado na memória colectiva. E esses momentos de folia são provas disso. A tradição pode e deve ser renovada. Podemos e devemos ser contemporâneos mantendo as tradições. Aqui, como na poesia, a transgressão está sempre presente. Nestes momentos festivos, as comunidades estão juntas num sentido de igualdade que não existe no quotidiano.
As artes são frequentemente relegadas para segundo plano, a nível económico e político. E isto não acontece apenas em tempos de crise. Que importância têm as artes na sociedade quotidiana?
A importância das artes é evidente. Não acabam nem com a crise. São essenciais à existência humana. O ser humano tem o cérebro enorme para imaginar, para sonhar. E esses sonhos e essa imaginação vivem na sociedade através da arte.
Na obra A casa dos mil andares – de que tanto gosta –, ninguém sabe onde está o poder. Quem é que hoje tem o poder sobre as artes?
Cada um de nós tem um poder enorme. O poder sobre as artes deve estar em todos nós e não só nos artistas ou nos decisores das políticas.
Para quando podemos esperar a encenação de A casa dos mil andares?
É um sonho que ainda não foi concretizado. É um livro belíssimo de 1930, premonitório, uma metáfora da nossa sociedade. Um dia, não sei quando…
O texto da peça “Sermão aos Peixes” e o guião do filme “Jaime” encontram-se na medida em que denunciam os problemas sociais da época a que pertencem. Ambos olham, por exemplo, para a corrupção e para a traição. Qual a actualidade dos aspectos que estas duas obras abordam?
É triste, mas é verdade. O “Sermão de Santo António aos Peixes”, do padre António Vieira, por exemplo, parece que é mais actual nos nossos dias do que na época em que foi proferido, 1654. A metáfora que encerra é potente: “Peixes, a primeira cousa que me desedifica de vós, é que vos comeis uns aos outros. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”