Na noite todos os gatos são pardos. Existe outra vida: silêncios ininterruptos que se escondem em insónia, vidas que se cruzam e se tecem, loucuras que se fazem e se pretendem a esquecimentos, séries e livros que se perdem em horas que não são suficientes em honra de leitura e assistência.
Na noite, amantes trocam juras de amor ou sexo regado a álcool, chora-se e ri-se em busca de respostas que muitas vezes não chegam, copos de vinho são bebidos em balcões solitários.
Os monstros escondem-se nos armários. Interessante seria viver todas as vidas que se estendem por essas noites fora, não dormir de facto e apreender as histórias que acontecem durante a noite como se fosse dia.
A noite pode ser viciante. Inicia-se tarde esta vida que acontece à noite. Depois do dia, colocam-se capas e vestem-se personagens e o mundo inebriante surge. A música requer volume alto, não se está mais sozinho. Morcegos como eu reencontram-se, conversam, pagam-se copos a toda a gente que te conhece e tu que conheces todas a gente. Mesmo que de madrugada, ao chegares a casa, nem a ti próprio te reconheças.
Já passei muitas e longas noites em branco. Nelas busquei soluções e deitei álcool em feridas que teimavam em não sarar. Muitas mais perguntas se levantaram em resposta a outras perguntas que já existiam e os olhos pesavam e ardiam e o sono que estava à porta teimava em não abri-la, em teimosia de que na escuridão seria mais fácil centrar-me em coisas que com o passar das horas se descobriam sem nexo.
Relembrava-me da história cheia de lógica que me contavam em criança, quando não queria dormir, porque temia a senhora longa noite: que enquanto todos dormiam, muitos se descobriam despertos como de dia, o padeiro que fazia o pão que iria comer ao pequeno-almoço, os homens do lixo que o recolhiam em duras vidas para que a cidade acordasse limpa de manhã. Assim, diziam-me, a noite já não te é tão assustadora, vês?
Quantas vezes, passei eu durante a noite, pelos camiões que recolhiam o lixo… Para quem vive a noite como se fosse dia, esse barulho característico é familiar.
Homens e mulheres, muitos, têm uma vida incomum para que o mundo continue a girar assim, garantido, como o conhecemos.
Também vivemos a noite em nós. Nos segredos e nos defeitos que queremos ocultar, nos demónios que tememos enfrentar, nas coisas que nos desatinam e que nos esquecemos que precisam ser noite para que lhes possamos jogar luz.
Se não fosse a noite, a lua jamais reinaria, tão soberana e bela.