2020, não obstante tantos fados, para mim foi produtivo, serviu-me para fazer coisas que queria e esperava fazer, uma delas a certificação em Programação Neuro Linguística. Um dos aspectos referidos no currículo do curso passava pela definição de PNL, abordada sem grande academismo antes da incursão na sua história, ainda curta, e nomes de relevo na matéria. Definir o que é a PNL (não, não se trata aqui do Plano Nacional de Leitura) é, desde logo, entrar no jogo do encaixotamento das coisas, na arrumação esquematizada das ideias, o que me parece ser antítese do que a PNL propõe. Mas como é que a gente se entende sem definições? Quando me perguntavam o que tinha estado a estudar/praticar exactamente sentia-me uma má aluna, pouco digna até do que havia aprendido, por não encontrar uma definição à altura, que fizesse jus a tudo o que tinha descoberto.
Lembro-me de ter lançado esta objecção ao José Figueira[1], quando defendia que as definições e os pré-conceitos nos fazem falta para construir pensamento pois, de contrário, estaríamos sempre a voltar ao início, à estaca zero. Se não pudéssemos encaixotar ideias, estaríamos em permanente condição de tabula rasa, como que numa virgindade intelectual. Os raciocínios dedutivo e indutivo poupam-nos muito tempo, são atalhos económicos para a massa cinzenta. A resposta do José foi, na minha leitura de então, um pouco brusca, pouco receptivo à minha defesa dos mecanismos do pensamento. Há coisas que só o tempo arruma e clarifica: creio que ele concluiu que eu precisava de ser provocada nesta minha crença tão enraizada de que a mente nos é tão útil. Disse-me num tom até jocoso que ficasse com os meus conceitos e juízos, tudo certo, desde que eles não me prejudicassem: “o problema, Joana, é quando os juízos que fazes te prejudicam”.
Se os pensamentos nos são úteis, tudo está bem, o pior é quando estes pensamentos, que na maioria das vezes se traduzem em crenças e convicções – que tratamos como factos – nos condicionam, nos prendem a um estado de coisas que, de real, só tem a nossa apreciação sobre elas. Ali ficamos, presos a um pensamento gerado por nós, em círculo fechado.
Tempo, o nosso grande aliado. Mais uma crença: considero que precisamos de tempo para absorver informação, processá-la, torná-la nossa, de outro modo não passamos de papagaios sofistas. Já passou o tempo, o necessário para, pelo menos, conseguir avançar com uma explicação sucinta que se pode converter, claro está, em definição. O que é PNL? É desconstrução. Desconstruir tudo o que os nossos pais, amigos, família, sociedade circundante, contexto, nós próprios de sobremaneira, andámos tão zelosamente a construir (se soubesses, Piaget…).
Como o nosso pensamento teima em permanecer vaidoso de si próprio, a PNL recorre a algumas técnicas que põem em evidência a necessidade e, depois, a eficácia desta desconstrução, que passa essencialmente por questionar toda a panóplia de histórias que contamos a nós próprios, toda a trama em que nos montamos e nos apresentamos ao mundo. É então comum o propósito de todas as técnicas utilizadas: retirar, limpar, questionar o que está a mais, expurgar o que se colou à ideia que temos de nós, fundada muitas vezes na repetição exaustiva sobre si mesma, buscando uma visão mais clara, menos poluída, que nos deixe embarcar menos nas conversas que as palavras dão. São várias técnicas que, na base, questionam e põem em evidência as convicções que temos sobre nós, sobre os outros, sobre o mundo. Convém estar disposto a fazer esta espécie de striptease mental e, logo, emocional; convém estarmos preparados para nos vermos nus perante nós próprios. Não nos deixemos iludir, mesmo sendo, muitas vezes, fonte de sofrimento, agarramo-nos às nossas crenças como se elas nos protegessem, fossem escudo na nossa incursão pela vida, resguardando-nos numa tal posição que se cristaliza (pensamos nós) pela ideia narcísica da nossa entidade, que se cria e recria em elipse constante. Sim, em certa medida as crenças são escudos, armaduras que nos protegem, essencialmente, da mudança. Afeiçoamo-nos à nossa personagem e não nos queremos despedir, especialistas em encontrar artimanhas que a sustentem, e, caso fácil e perigoso, lá vamos nós embarcados num monte de convicções, convictos de que nada há a fazer.
A linguagem é componente fundamental de reflexão, mas, após tomar consciência das inúmeras artimanhas da construção linguística, como distorções, pressuposições, generalizações, omissões, e tantas mais, cada vez menos a usamos fora do sítio. Ou antes, cada vez mais tomamos consciência de como a usamos indevidamente. Sabemos que pensamos com palavras, mas antes de tomar o pensamento como reflexo da realidade, há que pô-lo em causa. Questioná-lo de tal forma que, por vezes, deixamos de ser capazes de o defender, qual método científico. Nesse momento percebemos que nos montamos em falácias a cada momento. A PNL obriga o pensamento a analisar-se a si próprio. Não exclui o inconsciente que é tanto desta conversa, mas desse podemos falar muito e dizer pouco. Comecemos por tomar consciência do que dizemos e o quanto estamos dispostos a acreditar nisso.
[1] Agora estas pessoas assumem várias designações sopradas pelos tempos, como formador, coach, master, e tantas mais e mais convincentes se anglicizadas. Para mim foi um professor, sendo que continuo convicta na utilização do termo: um professor é alguém a quem reconhecemos vasto conhecimento sobre determinada matéria e, esta cópula é essencial, a sabe transmitir. Um professor ensina. Não vejo melhor designação.