O Pugilismo no Cinema em 5 Filmes

Foi com Toiro Enraivecido que me apaixonei pelo boxe, ou melhor, pelos filmes sobre boxe; melhor ainda: pelas histórias que retratam o (sub)mundo do boxe. Vi-o pela segunda vez em casa em DVD, nos primórdios desta tecnologia em Portugal. Não recordo o primeiro contacto, mas não me prendeu o amor. Cheguei a ele tendo como única referência um comentário da professora de Português do 6º ano que, não sei a que propósito, falou de De Niro. Talvez discutíssemos a representação e o esforço dos actores. Foi então que ela disse que o actor italo-americano havia engordado vinte e cinco quilos para o papel de um pugilista. À pergunta dela, nenhum de nós sabia o nome do filme, e ela disse-o: Toiro Enraivecido.

O nome ficou-me e em casa, os meus pais reconheciam-no. Tinha 12 anos e conhecia De Niro de Encontro com o Amor, um dos filmes da família, que andava lá por casa (mal sabia eu então ser este um remake de Breve Encontro, que viria a ser um dos meus filmes favoritos). Um actor ganhar tanto peso para o papel de Jack LaMotta… devia ser um lutador e tanto.

Vi o filme. O peso não era para representar LaMotta no ringue, mas no crepúsculo da vida, o atleta depois de se retirar, a decadência de quem antes andou no estrelato. Que filmasso! Da direcção de Scorcese à brutalidade de De Niro – um autêntico touro – a filmagem dos combates é arte em estado puro. Mais tarde li que o trabalho de câmara de Thelma Shoonmaker (não sei se foi dela a ideia de aumentar o tamanho do ringue) foi premiado com o óscar para melhor montagem. Estava dado o pontapé de saída para o meu cinema de combate.

Já com o CD-ROM Cinemania97 (que saiu em 96), passei horas em frente ao PC a ler sobre os melhores filmes de sempre, a conhecer os artistas e obras clássicas, muitos e muitas antes de alguma vez os ter visto, a ver trailers, os prémios que ganharam, e sobretudo a ler as críticas de três grandes norte-americanos estudiosos de cinema: Leonard Maltin, Pauline Kael e Roger Ebert. Deparei-me com Corpo e Alma, um filme de 1947 realizado por Roberto Rossen, com John Garfield. Num rasgo milagroso, vi na Fnac uma VHS (quando estavam já em declínio), e comprei. Que murro! Apaixonei-me pelo filme, pelo actor, pela realização e… pela montagem (sem o saber). Os editores, Robert Parish e Francis D. Lyon levaram para casa o mesmo óscar que trinta e três anos mais tarde receberia Shoonmaker. O director de fotografia, James Wong Howe filmou as cenas no ringue sobre patins, empurrado por um assistente, para que a câmara pudesse acompanhar os combates e rostos dos lutadores sem mudar de plano.

Corpo e Alma colou-se-me, tal como o Filme Negro e, creio, talvez tenha por esta altura começado a suspeitar gostar de histórias que orbitam em torno do boxe, a brutalidade e solidão dos lutadores, o submundo das apostas, dos escroques, das vidas destruídas ou decadentes dos boxeurs. Nesse tempo, estes filmes só cabiam no preto-e-branco (Toiro Enraivecido foi, em 1980, propositadamente filmado sem cor).

Estava pronto para Rocky. Outro DVD visto em casa. A estranheza de ver Stallone sem esteroides, vulnerável, e estranhando até os seus dotes (foi ele quem escreveu o argumento, nomeado para o óscar). Rocky é fantástico, num ano de 1976 muito concorrido, e finalmente um filme de boxe alcançou o prémio maior da academia, com a direcção de John G. Avildsen também a ser reconhecida.

Já não tinha dúvidas da minha atracção por este desporto e pelo que acontecia fora do ringue. Percebi que o ringue se transformava na ambição maior para glória e o dinheiro, mas também no escape para todas as agruras, onde explodiam as frustrações, e das tristezas se faziam socos e sangue.

Fiquei anos, muitos (mais de uma década) sem tocar no tema cinematograficamente. Veio a Cinemateca e o streaming e continuei abstémio. Até a segunda vaga do streaming e as smart TVs me abrirem as portas do cinema raro. E num intervalo de poucos meses, pude ver dois filmes que vinham das tardes e noites passadas em frente ao PC: O Campeão, de 1931, e Nobreza de Campeão, de 1949. King Vidor e Robert Wise, dois grandes realizadores; Wallace Beery e Robert Ryan, dois grande actores. E duas histórias que ajudaram a sedimentar esta paixão.

O Campeão talvez seja o pior dos cinco filmes. O dramalhão do ex-alcoólico que volta aos ringues para dar um futuro ao filho (o maravilhoso Jackie Cooper), não faz de O Campeão um mau filme, mas cai na esparrela da lágrima fácil.

Nobreza de Campeão traz, como Corpo e Alma já o havia feito, a máfia e os combates combinados, e as escolhas que os lutadores têm que fazer, e que tantas vezes fazem deles heróis maiores fora do ringue do que no palco dos combates. E se Beery venceu o óscar no filme de 31, Ryan foi esquecido. Como haveria de ser sempre até à sua morte, em 1973. Robert Ryan foi um belíssimo actor do período clássico de Hollywood. O lutador Bill “Stoker” Thompson aí está para o comprovar.

Talvez não me tenha apaixonado tanto pelo boxe como pelas suas histórias; e talvez resista a ver tantos outros filmes sobre pugilismo (como Ali ou The Cinderella Man, por exemplo) para não estragar o arranjo. Ou talvez seja apenas uma questão de conjugar vontade e oportunidade. Vi The Fighter, com Mark Wahlberg e Christian Bale no cinema, um filme que não cabe neste artigo, mas que recordo até ter gostado. Só que não me ficou. Provavelmente está aqui a grande diferença – há filmes bons que não nos tocam da mesma forma que outros filmes bons; e há filmes não tão bons de início, que vão trabalhando em nós e ultrapassando outros que até haviam partido com avanço no momento em que o vimos.

Estes cinco filmes tocaram-me. Podia até colocá-los por ordem (que não é a que o texto segue), mas cada vez menos as listas ordenadas reflectem as minhas impressões. Mostram, sim, o que senti num momento, um carimbo que cristaliza a minha relação com tal filme naquele instante. Só que a vida avança e nós, com ela, aprendemos tantas coisas que nos fazem mudar acerca das relações, da política, do mundo, que seria redutor cravar uma série ordenada para todo o sempre. Se, para além disto, há filmes que se mantêm por uma vida nos lugares cimeiros (e nas linhas anteriores, há dois filmes que têm alcançado tal feito), então só pode ser por serem mesmo bons!

[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]

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