Em Chelovek s kino-apparatom (1929), Dziga Vertov abriu caminho para as inúmeras possibilidades narrativas e técnicas que, de algum modo, encontramos no cinema dos dias de hoje.
A sua premissa parecia à partida bastante simples. Durante um dia, um homem com uma câmara de filmar percorre a cidade de Moscovo, captando o quotidiano da civilização russa. Porém, antevia algo mais complexo e, para os seus pensadores, ainda de árdua compreensão. Com base na corrente dos ‘-ismos’, em expansão nos anos 20, nomeadamente o Cubismo, o expressionismo e o mais influente surrealismo – enunciado em 1924, no Manifesto Surrealista de André Breton -, este filme tentava criar (e digamos que conseguiu) uma nova linguagem cinematográfica. Sem intertítulos, cenários, estúdios, ou actores, tentava alcançar a população analfabeta, elevada no país.
Com uma montagem promotora da explosão dos sentidos, a película permitiu a colisão/fusão do Homem e da máquina. Todos os seus processos tornam-se mecânicos e estão em permanente movimento. Até mesmo o nome do realizador gira – o seu verdadeiro nome era Denis Kaufman -, Dziga Vertov, que significa pião. Este ‘cinema-olho’ comprova a crescente industrialização de que a Rússia era alvo e, para além disso, que a principal faceta de qualquer máquina é o movimento. Presente na cidade através dos meios de transporte, como o automóvel, ou o eléctrico e as fábricas, o cineasta constrói a sua própria visão do quotidiano. Agora, o cinema encontra condições transcendentes a qualquer ritmo alguma vez criado.
Do bebé que nasce, ao sujeito que aprende a nadar, o filme confirma o cinema como uma arte, a sétima – teorizada pela primeira vez em 1923, com a publicação de Manifeste des Sept Arts, de Ricciotto Canudo. Presta ainda homenagem à locomoção animal (sobretudo, do cavalo) patente nos primeiros fotogramas de Eadweard Muybridge.
Tudo isso é garantido, através da câmara capaz de se montar sozinha. Entre o acordar, o sonhar e o deitar, o processo é já mecânico, tal como uma sala de cinema, espaço que, ao longo do tempo, se adapta ao seu espectador – vejamos a mais recente, o IMAX.
Sem receio de filmar a sociedade de massas, cuja vida está literalmente em círculo, a película expõe os primeiros grandes movimentos migratórios, ou a ida para a praia, fenómeno em crescente expansão. E tudo isto não poderia ser observado sem som (a versão feita para os Estados Unidos da América conta com a banda-sonora de Michael Nyman) que serve de fio condutor, o continuum de uma imagem para a outra.
Enfim, o cinema, enquanto máquina de ilusões, estará para sempre enraizado na nossa experiência. E além disso, é muitas vezes eficaz ao invocar o ser superior, que a cada momento molda a sua criação: o Homem cuja imagem é agora criada à semelhança de uma outra imagem, a da câmara.
Ficha Técnica
Título português: O Homem da Câmara de Filmar/ Título original: Chelovek s kino-apparatom/ Realizador: Dziga Vertov/ Argumento: Dziga Vertov/ Elenco: Mikhail Kaufman/ Música: Michael Nyman/ Duração: 68 minutos