No teu deserto há sempre um olhar para o amor

O deserto do Saara como o vemos – imenso, de silêncio penetrante onde apenas sentimos as nossas emoções, o palpitar cardíaco do que vamos encontrar e o pó intenso no rosto que nos impede de respirar e absorver os aromas locais – é arrebatador no olhar que vislumbramos entre o contacto dos raios solares e o firmamento do horizonte que nunca acaba.

Posso dizer-vos, que tive o meu segundo contacto com o deserto do Saara, precisamente na Tunísia, um tour pela cidade de Douz, percorrendo depois de jeep, as extensas dunas do deserto e aperceber-me que a minha visão oscilava entre ver terra e pó de perder de vista e a ânsia de encontrar o fim do percurso, como encontrar água, sim por que podemos encontrar água em alguns oásis no deserto, tal como em Tozeur.

Segundo dizem, o que se vive e sente fica sempre refletido na memória e no deserto. Nunca pensei que esta experiência de percorrer o deserto ficasse tão gravada nas minhas memórias como se fosse hoje.

O ambiente e a paisagem que contemplamos são únicos, para não vos falar das experiências com os dromedários, porque estes seres distintos têm sempre histórias curiosas e com alguma piada.

No teu Deserto, a obra que vos trago hoje, é a narrativa comum de um amor que parece nunca se iniciar, mas perdura, mesmo para além de todos os silêncios do tempo.

Este quase romance como intitula o seu autor, Miguel Sousa Tavares, reconhecido pela escrita sempre truculenta e crítica, é uma nítida homenagem à capacidade de se fazer e ter silêncio na imensidão do deserto, uma espécie de hino à amizade entre um homem e uma mulher, aos sentimentos mais puros e generosos que podem ser construídos num deserto de quase tudo.

Segundo o autor, há viagens sem regresso, mas neste caso particular, uma foto antiga vem suscitar recordações de uma viagem ao norte de África com mais de vinte anos e as memórias regressam e bem, aliás, a jovem Cláudia nunca foi esquecida pelo narrador.

“No teu Deserto” começa com a descrição de uma viagem de jeep de 4 dias realizada no Norte de África em Novembro de 1987 pelo narrador, o próprio Miguel Sousa Tavares e o primeiro contacto e encontro com a jovem Cláudia de 21 anos, que de desconhecida e companheira de viagem se tornou alguém muito especial.

A amizade e o descobrirem-se entre si como seres humanos e, a necessidade de se adaptarem a um meio diferente, vazio, inóspito, tornam-se marcantes para estas duas personagens que vão assistindo ao desenrolar de uma relação improvável entre dois desconhecidos.

Não posso deixar de destacar o lirismo marcante de Miguel, na forma como consegue convidar o leitor a explorar esta história de sentimentos, de pessoas comuns que se cruzam num momento de vida e no lugar mais improvável – o deserto do Saara.

Do silêncio e pouco à vontade entre as duas personagens, vai crescendo a cumplicidade na fotografia, no captar de olhares que sabem ler os sentimentos, o narrador deixa-se contagiar pela beleza e jovialidade de Cláudia que o faz acreditar que aquele ano terá sido, nos seus 36 anos, o melhor da sua vida.

Foi precisamente nessa altura que se sentiu, como diz, jovem, imortal e até indiferente à ideia de morte. Segundo ele, a beleza não tem idade e que os homens ficam eternamente jovens quando morrem jovens.

Considero uma narrativa intimista e interessante de se ler, não é um romance “puro”, mas falta-lhe a descrição mais pormenorizada dos locais, das paisagens, do desenvolvimento dos diálogos e até dos pensamentos. Seria de esperar algo diferente em termos da relação estabelecida entre as duas personagens e as expectativas geradas.

Conhecendo algumas obras de Miguel Sousa Tavares estava á espera de uma história construída de outra forma, quando assistimos a uma narrativa que se revela como uma carta de quase despedida e de homenagem a Cláudia que foi notoriamente marcante para o narrador.

Não obstante a falta de profundidade na trama de ser apenas um “quase” romance, é um livro de leitura fácil, leve que podemos consumir num curto espaço de tempo e que nos envolve e toca a nível de emoções e sensações.

Não irei abrir a cortina para vos desvendar o fim desta história peculiar que vos convido a ler e a explorar, mas aproveito para realçar que a experiência e permanência no deserto, por muito curta que possa ser, deixa sempre memórias positivas, ou cicatrizes de vida talvez menos positivas.

Mesmo quando a vida pode parecer um “deserto” de tudo, ou quase tudo, o nosso olhar e o que vimos e sentimos é sempre inteiro e nosso e não nos pode ser retirado.

Esta história podia muito bem ter-se iniciado com este trecho do livro que me fez refletir:

«Éramos donos do que víamos: até onde o olhar alcançava, era tudo nosso. E tínhamos um deserto inteiro para olhar.»

«Na verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de tudo, ou, pelo contrário, o absoluto.»

– In No teu Deserto, Miguel Sousa Tavares, 2009, Editora Oficina do Livro

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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