Nascido a 4 de Julho

Teve a ver com a carga psicológica, aliada à violência física, que pautou a resposta que dei na pergunta-diagnóstico na aula de Filosofia do 10.º ano – Qual é o teu filme favorito? Justifica. Tinha quinze anos e não fiquei com o papel onde deixei meia-página manuscrita sobre um filme que me tivesse impressionado, mas o Vítor, o professor que na altura cumpria o ano de estágio e é hoje um dos meus melhores amigos guardou-a. Nunca me a mostrou, mas volta e meia, sempre que esse tempo emerge das profundezas da meia vida que levamos, afloramos vapores da minha resposta, e da impressão que ela causou no Vítor.

Oliver Stone não foi o primeiro realizador de quem fui fã. Talvez Spielberg e Lean tenham surgido antes, pelos filmes gravados lá em casa ou alugados no clube de vídeo. De qualquer modo, Stone terá sido o primeiro director cuja admiração veio de uma vontade própria e não de herança familiar ou influência de grupo.

Nascido a 4 de Julho foi o primeiro filme que vi do realizador americano e foi paixão à primeira vista, talvez aguçado pelos reiterados avisos do meu pai – Olha que é muito violento!. Só que eu queria mais, mais filmes, outros filmes, esticar a corda para passar a barreira do cinema adulto (não confundir com “para adultos”). 

A composição de Ron Kovic protagonizada por Tom Cruise é impressionante (esse ano de 89 foi, de resto, uma masterclass de filmes e interpretações masculinas: Daniel Day-Lewis em O Meu Pé Esquerdo, Robin Williams em Clube dos Poetas Mortos, e Morgan Freeman com Miss Daisy), bem como a direcção de Stone e a recriação de época (um dos aspectos que mais me cativou e que ainda hoje figura como um critério para o qual pendo naturalmente na apreciação de um filme). O período revolucionário do final da década de 60 e início dos 70s, e todo o questionamento que trouxe a um jovem idealista que vai para o Vietname, regressando paraplégico e, depois de percorrer o calvário da revolta em que vê, se torna num activista contra a guerra, fazem de Nascido a 4 de Julho uma obra a ver.

Nessa época, da cinematografia de Oliver Stone, percorri JFK (quantas vezes não puxei a fita atrás para acompanhar os detalhes), As Vozes da Ira (uma obra que encontrou na revolta do adolescente que eu então era, um fascínio especial), Platoon – Os Bravos do Pelotão (o Inferno, o Paraíso e o Purgatório – Tom Berenger, Willem Dafoe e Charlie Sheen), Nixon (a primeira desilusão com uma obra de Stone) e Quando o Céu e a Terra Mudaram de Lugar (a primeira xaropada) para reforçar a preferência pela estreia: ainda hoje Nascido a 4 de Julho continua a ser para mim um exemplo magnífico de bom cinema, apesar de não o rever há uns quinze anos.

Só mais tarde vi Wall Street (um filme interessante), não conseguindo ainda hoje, de uma forma automática, associá-lo a Oliver Stone com a naturalidade com que acontece com os restantes filmes mencionados. 

Stone viria a cair em desgraça, de onde não mais se levantou. As razões podem ser muitas e subjectivas e talvez todas tenham o seu quinhão – monotemático, violento, ultrapassado pelo tempo, teimoso – mas nada apaga a qualidade do trabalho que desenvolveu durante uma década/década e meia. Nascido a 4 de Julho é daquelas obras que, pertencendo às gravações de família que durante anos descansaram lá em casa, foi minha desde o início. Todos os que gostamos de uma determinada arte ou desporto temos as nossas efemérides, marcos que, por uma razão mais proeminente ou obscura, gravaram em nós uma impressão mais forte do que uma tatuagem. Este filme é uma dessas luzes de presença, é este filme. Este texto é só mais uma prova de como ela continua a brilhar na noite do passado.

Talvez num próximo jantar recuperemos mais um trecho da resposta que escrevi aos quinze anos. Quando o (bom) cinema ajuda a construir amizades, resta-nos agradecer.

[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]

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