Lion é a incrível história verídica de um jovem que anseia regressar a casa, protagonizado por Dev Patel e por Nicole Kidman.
A história de Lion começa na Índia em 1986, quando um miúdo de cinco anos chamado Saroo Brierley e pertencente a um dos bairros mais pobres do Khandwa, fica preso num comboio. Saroo acaba por viajar mais de 1600 quilómetros pelo país, acabando por chegar a um abrigo para crianças abandonadas, perdidas e órfãs, e por fim é adotado por um doce casal australiano. Passados 25 anos, e já com o Google Earth em ascensão no mercado digital, Saroo decide procurar o lar onde nasceu e estabelecer o percurso para casa, numa viagem de interrogações e de descobertas pelo passado. Tanto para quem conhece ou não esta história haverá muita disposição para lágrimas, afinal estamos num enredo que se enfoca num país subdesenvolvido, onde mais de 80 mil crianças desaparecem por ano, e os recursos para iniciar as respetivas investigações são muito limitados. Mas as lágrimas podem esperar, e ser guardadas para o final.
Lion é o primeiro filme realizado por Garth Davis, que percebe as dimensões emocionais que constroem a experiência de Saroo, o que nos faz mergulhar nelas. Adaptado do livro A Long Way Home, da autoria do próprio Saroo Brierley, o filme vive de uma história eficaz, mas essencialmente de uma estrutura narrativa inicial que rompe com aquilo que estamos habituados a assistir num cinema mais ou menos mainstream. Em qualquer outro filme, os momentos em que Saroo é ainda criança seriam, de certo modo, neglicenciados e literalmente despachados a favor de uma segunda parte, em que este é já adulto. Ora, Garth Davis prefere focar-se na odisseia de um miúdo – interpretado pelo genuíno Sunny Pawar, um ator não-profissional-, durante a primeira metade do projeto, aproveitando-se de uma estética que tem muito a agradecer ao neo-realismo e, por conseguinte, revela ser hábil em focar-se nos mais degradantes e sujos ambientes, onde uma criança tenta sobreviver, deambulando de um local perigoso para o outro.
Verdade seja diante, estamos diante de um poucos retratos autênticos da Índia: um país tendencialmente (e cinematograficamente) disfarçado de uma excêntrica coloração e de uns grandiosos monumentos, mas que é aqui despojado dessa vinculação turística, com o intuito de salientar o deplorável quotidiano dos seus cidadãos, sempre sem artifícios e distinguindo-se, por exemplo, dos dois filmes d’O Exótico Hotel Marigold (também protagonizado por Dev Patel, mas num desempenho bastante ridicularizado). Além disso, as personagens não falam inglês de imediato, mas discursam em bengali, e em outros instantes, em hindu, num país com mais de quatrocentos dialetos e idiomas. Saroo faz-se sempre acompanhar pelo irmão Guddu (Abhishek Bharate) e ambos colocam um sorriso na cara do espetador por tanta química e energia um com ou outro, ao mesmo tempo que mantêm o espetador fixo na temática social, posto que ambos arriscam a vida para comprar bens alimentares para a sua família composta por mais uma irmã e pela mãe.
Depois de um ou outro acontecimento peculiar, Saroo é escolhido pelos serviços sociais como o primeiro filho adotivo do casal Sue e John Brierley (os australianos Nicole Kidman e David Wenham que já haviam colaborado em Moulin Rouge! e Austrália, de Baz Luhrmann) que vivem na ilha da Tasmânia, na Austrália. Tal como nós, quando conhece o casal maravilha, Saroo mostra-se um quanto intimidado, talvez por estar na presença de dois célebres talentos, sobretudo a ‘mãe’ Nicole Kidman que oferece uma interpretação genuína, muito próxima à sua experiência na adoção e que quase sempre a tentar sorrir para que a criança se sinta confortável no novo lar. A narrativa decorre com alguma normalidade, com o casal a adotar mais um rapaz, Mantosh, este que revela sérios problemas mentais.
Entretanto, o filme sai de uma estética neo-realista e explora a degradação de um ambiente dito familiar, com o jovem Sunny Pawar a ser substituído por Dev Patel (ator britânico que tem origens indianas). Aí, a narrativa perde um pouco o seu interesse, em muito pela ousadia das elipses – veja-se como o protagonista vai estudar Gestão Hoteleira para Melbourne, mas depois regressa à Tasmânia e não sabemos nem onde ou quando começou a trabalhar. Também não há muito tempo para explorar as tão peculiares relações entre mãe, pai e os seus dois filhos, que quer queiram, quer não, são adotados.
Saliente-se apenas uma das cenas mais intensas, quando num jantar, Saroo decide trazer o assunto à discussão. Com efeito, o filme permanecerá demasiado tempo sobre a investigação, em que Saroo olha para distintos mapas, impressos e digitais, obcecado por descobrir de onde é, e eminentemente, para onde vai. A confusão da sua mente fará com que uma série inesperada de memórias ressurjam, o que lamentavelmente coloca Garth Davis num terreno seguro e não no terreno ousado como na primeira parte. Davis na segunda parte não tem vontade de arriscar e até insere um romance aparatosamente forçado entre as personagens de Dev Patel e Rooney Mara (a atriz de Carol), onde há, sobretudo com ela, um autêntico desperdício de talento, isto porque a sua personagem ora sai, ora entra em cena – e no final não dá respostas efectivas sobre como terminou o relacionamento de ambos, se é que terminou.
Lion tem ainda fortes ressonâncias de outras das interpretações de Dev Patel, nomeadamente de Quem Quer Ser Bilionário?, dirigido por Danny Boyle, um dos filmes mais envolventes da última década que também tinha uma notada dimensão social e realista. Ambos, são baseados em histórias verídicas sobre crianças indianas pobres cujas vidas se transformam inesperadamente, catapultado-as para novos mundos. No entanto, neste caso em específico, a personagem de Dev Patel está presa na sua infância, culpabilizando-se por viver num mundo de privilégios e assombrado por memórias fugazes do seu passado. Será na confrontação de tudo isto que a personagem de Nicole Kidman ganhará maior impacto. A sua personagem justifica ainda o porquê do casal ter recorrido à adoção e relembra que antes sequer de Saroo pertencer à Índia ou à Austrália é, inevitavelmente um cidadão do mundo.
A principal ajuda nesse domínio é da parte da direção de fotografia de Greg Fraser (que também foi o responsável pelas imagens de Zero Dark Thirty), que regista a contraposição dos dois mundos – o pobre dos bairros de lata indianos e o rico da costa burguesa australiana, através de planos aéreos e picados que são focados deste o começo da narrativa, e estão em constante correlação uns com os outros. De facto, existe um plano no computador de Saroo, do Google Earth, que apela a esse afastamento dos local que definimos como casa, para mostrar o planeta Terra como esse grande planeta que nos envolve.
Talvez, por isso mesmo, não houvesse necessidade de passar o final do filme a acentuar o problema como mundial e apelar à ajuda humanitária. Junta-se igualmente, à mesma receita, um continuum musical exacerbado que terá tudo para o final ser enxugado em lágrimas e soluços, o que não desvaloriza o impacto cultural que Lion terá. Isto porque, se bem nos lembramos os Óscares deste ano foram criticados por falta de diversidade, o que talvez não aconteça no início do próximo, se um dos membros do elenco principal de Lion for nomeado à estatueta dourada. A ver vamos se o lançamento no Festival de Toronto o catapultou este importante drama para a temporada de prémios.
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