Família disfuncional (I)

Família…o que é representa a família?! Que definições encerra?! Laços de sangue?! Afinidade filosófica?! Partilha de valores?! Partilha de tecto ou paredes?!

Supõe-se que os seus elementos se devam entender? Respeitar? Que sejam unidos? Amigos? Companheiros?!

Debrucemo-nos sobre a família Europa: marcada por encontros e desencontros, alianças e desavenças, por relações de camaradagem ou de domínio, de lealdade e de traição, parceria e de usurpação, manifestações do carinho mais ternurento e do ódio mais visceral. Enfim, não faltou nada a esta família de raízes ancestrais!

Terá sido certamente pelas cicatrizes bem vincadas deixadas pelos 2 confrontos sangrentos ocorridos no último século que se tentou construir algo em comum que fortalecesse os laços familiares na Europa. Ao criar um compromisso que vinculasse tendencialmente todos os seus elementos procurou-se colocar o bem-estar da família e não tanto o de cada um no topo das prioridades. Dessa forma evitava-se que os ressentimentos recalcados culminassem em conflito ou que a soberba de algum dos seus membros revelasse a sua face mais belicosa.

Assim nasceu a União Europeia (UE) *! E como se acordou conviver em família suprimiram-se as barreiras alfandegárias para fomentar o comércio interno, conceberam-se políticas comuns de âmbito familiar (agro-pecuária, pescas, minérios, etc.), abandonaram-se indústrias nacionais por se revelarem pouco rentáveis em prol de usufruir de produtos/serviços de melhor qualidade e relativamente baratos fornecidos por um familiar, criaram-se planos de financiamento (muitos a fundo perdido) para fazer convergir estruturalmente os membros menos desafogados e menos dotados em termos infra-estruturais, forjou-se legislação comum em diversas áreas (económica, fiscal, social, segurança, judicial, ambiental, etc.), entre outras iniciativas levadas a cabo para estreitar os laços familiares.

Finalmente, quase 50 anos depois de iniciada esta era de convivência pacífica, harmoniosa e solidária decidiu-se aprofundar o compromisso com um elo que formalizasse a união familiar: moeda única e correspondente política monetária.

Para este passo tão determinante avançou inicialmente o núcleo duro familiar do centro da Europa (com a notória excepção do Reino Unido) assim como todos os países do Sul. Para o efeito foram fixadas metas quantitativas (mais ou menos) exigentes que foram cumpridas – porque leviana ou intencionalmente mal fiscalizadas – com relativa facilidade. O propósito era assegurar um denominador comum na família prestes a enlaçar-se.

Como tal, e com tratados que conferiam ao eixo Franco-Alemão – e tacitamente aos que de perto gravitavam à sua volta – a primazia na definição das regras e dos valores que inspiravam a condução da política monetária no seio familiar reconhecia-se assim a sua proeminência.

Com este passo visava-se sincronizar a política monetária para funcionar a uma só velocidade procurando homogeneizar os ciclos económicos. Assim procurava-se, ao unificar a política cambial, impedir que os membros familiares a manipulassem para fazer face a uma conjuntura desfavorável em detrimento dos demais. Ou mesmo de dar azo a uma espiral predatória de desvalorizações cambiais que prejudicasse toda a Europa (e possivelmente o mundo). Por outro lado evitava-se o desperdício de recursos (que se traduzia num custo avultado) que representava manter uma reserva extensiva (e desejavelmente bem guarnecida) de divisas cambiais de muitos dos principais parceiros comerciais. Tanto mais importante quanto mais deficitário fosse o saldo da balança de transacções correntes dum país.

Ao lançar-se uma moeda comum para ser utilizada tendencialmente em todo território da família Europeia melhoravam-se substancialmente as condições de financiamento nos mercados financeiros principalmente para os seus membros do sul. Ao contrário do que se possa pensar países como a Alemanha também beneficiariam em qualquer circunstância em aderir ao Euro: 1. ainda que sendo o marco Alemão a referência na adesão à moeda única é incomparavelmente mais vantajoso para um investidor deter uma moeda com circulação num leque amplo de países, ainda para mais unidos por votos familiares; 2. para os detractores da moeda única relembra-se que os anteriores detentores de divisas mais fortes puderam beneficiar dum efeito depreciativo positivo induzido pela relativa fragilidade dos parentes do sul tornando as suas exportações para fora do seio familiar mais competitivas.

Do ponto de vista da economia real a constituição dum mercado único assente numa divisa tinha como desígnio fomentar a competitividade no seio familiar**, proporcionar economias de escala, potenciar as competências dos seus cidadãos ao permitir a sua livre circulação, encorajar sinergias empresariais, institucionais e académicas intra-familiares. Tudo isto com o intuito de reforçar a coesão familiar e ao mesmo tempo alavancar o poder e a influência da família Europa no mundo.

Embevecidos pelo sucesso da implementação da lógica familiar aclamou-se o processo de integração Europeu, a melhoria na qualidade de vida, a sua rede de protecção social, as leis laborais protectoras, a sua consciência de preservação ambiental e a sua moeda que se perfilava como uma alternativa cada vez mais credível à hegemonia do dólar americano como símbolo de poder.

Em meados da actual década os cidadãos da Europa enchiam-se de orgulho por fazer parte dessa grande família e pela qualidade de vida de gozavam, e encaravam os povos que a constituíam como irmãos até que…veio a crise…e tudo mudou de figura.

(continua na próxima semana)

* Nos seus primórdios esta solidariedade concretizou-se em políticas de cooperação na comercialização e distribuição de carvão e aço daí a sigla CECA.

** Pela moderação dos custos laborais obtidos através da arbitragem salarial no seio familiar.

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