Uma das memórias mais vívidas que tenho dos meus anos de criança prende-se com as longas férias de verão passadas numa aldeia remota em Trás-os-Montes. E, nos entretantos do rebuliço das brincadeiras, lembro-me perfeitamente das histórias contadas ao final da tarde. Uma roda de homens, mulheres e crianças, reunidas à volta de uma pilha imensa de amêndoas por descascar. Sentados no chão da eira, com uma navalha, tirávamos a casca exterior que não tinha saído, para expor a casca dura que esconde o grão. Seriam depois estendidas em esteiras para secar ao sol. Só mais tarde ensacadas para venda ou britadas para podermos comer a amêndoa.
E era nesse momento, quando já soprava uma brisa leve que amaciava o calor tórrido do dia que sempre fustigou as aldeias da “Terra Quente”, que se começavam a soltar as línguas. As histórias apareciam em torrente, cada um contando a sua. Os mais velhos, de cara enrugada, lembravam os tempos de antigamente, falando de quando não existia eletricidade, quando se lavava e curava a roupa no rio ou quando se caminhavam quilómetros a pé para ir à vila. Os adultos contavam as histórias do “lembras-te quando” fulano ou sicrano fez isto, ou aconteceu aquilo na aldeia X ou Y. As crianças ouviam ávidas e, de vez em quando, lá partilhavam uma historieta ou uma anedota.
Ria-se e até se cantava. Partilhava-se a merenda e um copo. Contudo, o ambiente intensificava-se quando se contavam histórias dos muito antigos ou dos espíritos. Da vez em que o raio atingiu o Joaquim e ele morreu mesmo ali, castigo de Deus certamente. Ou da Maria que se levantava sonâmbula durante as noites de luar para ir à fonte encher o cântaro, seguramente para fazer as mezinhas feiticeiras. Ou da alma penada do purgatório que em certas noites vagueava pelas ruas desertas da aldeia, alumiada por uma candeia a petróleo.

Tantas histórias… muitas delas com uma forte componente moralizante e ratificadora dos bons costumes. As histórias partilhadas, contadas em segredo ou em grupo, são momentos de comunhão. Abre-se o coração para ouvir, mas também para contar. Dão-nos um sentimento de pertença a uma comunidade.
Certamente que os antigos saberiam isto, de uma forma mais orgânica, diferente da consciência que existe atualmente. As tradições orais sempre tiveram um peso imenso nas sociedades sem escrita e, mesmo com o domínio desta técnica, ao longo de séculos e séculos, foi uma importante forma de passar mensagens, saberes e costumes, sobretudo se considerarmos o número imenso de iletrados.
Com a evolução das sociedades e o aumento da literacia, parece que as histórias ficaram apenas a fazer parte do universo das crianças. Para elas, seja na hora de deitar, na sala de aula ou em instituições culturais, existe sempre tempo e espaço para mais uma história. E ainda bem pois são fundamentais para o desenvolvimento de competências cognitivas e emocionais, como a criatividade, a expressão tanto oral como escrita, a empatia, entre outras.

Para os adultos parece ser um pouco diferente. A vida corrida do dia a dia parece ter secundarizado a importância das histórias. Será mesmo assim? As histórias continuam presentes, seja nos livros que lemos, nas partilhas com amigos ou até no momento de pausa para um café no trabalho. Também na vida profissional se ouve falar do storytelling como uma ferramenta essencial para construir pontes com os outros e para comunicar com as equipas. Mas o saber escutar, o tempo para o fazer com presença, parece estar em crise, ainda que os psicólogos afirmem que o ouvir (e contar) histórias é uma boa forma de controlar a ansiedade e o stress do mundo moderno.
Existe ainda um grupo populacional onde o contar histórias é fundamental. Para os séniores, ajuda a manter a memória alerta, relembram-se outros tempos e estreitam-se laços com quem os rodeia.
A história contada e ouvida permite perpetuar culturas, tradições e saberes. É também uma forma de alienação do mundo que nos rodeia, por vezes tão duro. Permite-nos, ainda, o contacto com o outro. Quando se conta e se ouve uma história, o tempo corre de forma diferente. Por vezes até fica parado num limbo. Esta é a magia das histórias.
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Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico.