Quando era miúda não havia preconceitos. Éramos todos iguais, todos garotos despreocupados que brincavam uns com os outros. Nem éramos racistas, tão pouco. As cores serviam para distinguir os berlindes e os abafadores. Eu era craque na arte dos bilas e todos me temiam. Jogar podia ser uma experiência penosa, porque ganhar-me seria uma possibilidade muito remota. Isso não os impedia de jogar e era sempre muito divertido. Machismo era uma palavra totalmente desconhecida. O que havia era rapazes e raparigas e cada um deles com as suas habilidades, malandrices e espertezas.
Era o tempo da inocência, da pureza, aquele tempo em que tudo era possível, em que não existiam nem problemas nem entraves. A imaginação reinava a toda a hora e as parvoíces que se faziam eram incríveis. Como nos sabíamos divertir com o pouco que tínhamos. Éramos pequenos inventores com inúmeras potencialidades que usávamos sempre que necessário.
Vivíamos na rua, um campo de jogos enorme e cheio de possibilidades a serem exploradas. Conhecíamo-nos pelo nome e ninguém olhava para a roupa que cada um usava. Por muito cuidado que tivéssemos, ela voltava para casa toda suja, cheia de terra e nódoas de relva e de rebuçados bem como de gelados partilhados. Não havia diferenças, éramos todos iguais. Para nós não fazia sentido que existissem diferenças, porque o nosso coração além de elástico era puro e ingénuo.
Como era simples a vida naqueles tempos! Uma carcaça dava para muitos e bebíamos da mesma garrafa de refrigerante. Não ficávamos doentes e a chuva nunca incomodava. Era mais um motivo de alegria. Saltávamos nas poças, nos charcos e as molhas eram tão refrescantes. Quem não se molhava era parvo. Nunca tivemos nojo uns dos outros e nem a partilha precisava de ser incentivada porque a entendíamos como natural. Uns verdadeiros democratas em bruto
Não havia ofensas e os palavrões, aquelas palavras novas descobertas entre o grupo, eram ditos à boca pequena, em casa e à boca cheia na rua. Nenhum era melhor que outro e assim devia ficar. Fazíamos uso das mesmas em todas as situações e a maldade, aquilo que se aprendeu mais tarde, não existia por isso a consciência estava muito tranquila. Que bem que se vivia!
Sempre fui engenhosa na parvoíce. Lembrava-me de cada disparate que, agora, me arrepia e choca. Caçava moscas vivas e passava uma agulha com linha, pelo meio delas. Usava um colar de moscas moribundas, o que significava um troféu absolutamente ridículo. Só de pensar nisso fico logo arrepiada, mas na altura era o máximo da diversão. Como era parva!
Hoje olho para essa minha atitude e repugna-me ter feito tal coisa. Onde é que eu tinha a alma? Pobres moscas. Um dia morreriam, mas não precisavam de ser torturadas. Não sabia o que era a inquisição ou a polícia política, mas já praticava as suas técnicas odiosas e desumanas. Os miúdos são maus, mas devem viver essa fase com a maior das despreocupações para tirarem as lições necessárias. No fundo, para nós, era uma luta natural entre o ser humano e a natureza.
Outra brincadeira estúpida que tínhamos era cortar o rabo às lagartixas. Que giro era ver o rabo a estrebuchar no chão e a pobre lagartixa a desaparecer nas ervas. Eu sabia que a cauda voltava a nascer, porque passava férias no campo e via a natureza a sério, por isso não me preocupava. Aliás, os chamados sentimentos de culpa não existiam e escusávamos de saber o que era isso. Claro que ali não havia estrelas do mar, mas eu era igualmente sádica com esses animais tão curiosos. Estava a aprender com a prática.
Crescer no meio de muitos rapazes aguça as técnicas e o engenho. Mesmo que houvesse mais raparigas, que não havia, eu era a única, eu era uma Maria Rapaz e desempenhava muito bem o meu papel. Não tinha medo de bichos, jogava à bola, corria, era a maior nos guelas e na carica. As laranjas serviam para colocar na parte de baixo das caricas e dar-lhes uma maior ergonomia. Tanto conhecimento que se estava a desenvolver. Tínhamos tanto!
As invenções também eram importantes. Não havia, fazia-se. Era preciso uma faca, mas havia pregos. Fácil de resolver. Colocava o prego na linha do comboio e, quando este passava por cima, o prego ficava achatado e dava uma útil faca. A engenharia não tinha segredos. E como eram resistentes. Serviam para depois criar peças únicas e fabulosas que nunca abandonarão o nosso imaginário.
E o automobilismo? Campeões dos carrinhos de rolamentos. Descíamos a rua, a uma velocidade doida, ao lado dos carros. Os condutores olhavam para nós incrédulos. Que doidos! Mas divertíamo-nos imenso com aqueles sprints malucos e infantis. Era uma total inconsciência do perigo, mas penso que a velocidade que conseguíamos valia tudo. Campeões da estupidez!
Um dia aconteceu um acidente. Quando um descia a rua, um condutor, que tinha estacionado o carro, abriu a porta e apanhou-o em cheio. Resultado: queixo partido. Pontos e mais pontos e um penso enorme. O condutor em pânico no centro de enfermagem e ele, todo contente, com a medalha da corrida. Durante imenso tempo era o tema de conversa. Aquela cicatriz era o troféu que muitos almejavam.
Claro que os carrinhos eram feitos por nós. As tábuas eram mendigadas ou aproveitadas da estância, que as disponibilizava com ar de gozo e os rolamentos apareciam, quase sempre milagrosamente, quando eram precisos. Depois era a linha de montagem, o trabalho de equipa, sem ainda saber quem foi o Ford e muito menos o Taylor. Funcionava na maior das perfeições e a ajuda era sempre desinteressada. O benefício era geral.
As bicicletas eram partilhadas. Ricos e pobres era uma realidade que desconhecíamos. Para nós uns tinham e outros não. Qual era o problema de partilhar? Ninguém estragava e, se fosse preciso, todos arranjavam o que se estragava. Grandes e fabulosos passeios que dávamos em conjunto. Claro que número de bicicletas era reduzido, mas viajávamos dois a dois e nada nos impedia de o fazer.
O máximo era dar arrotos. Sim, arrotos, aquilo que agora sabemos que é falta de educação. Um deles conseguia dizer o alfabeto todo em arrotos. Era um herói para nós. Ríamos muito desta enorme alarvidade, duma proeza que é muito discutível. Num grupo tão diferente a diversão era sempre igual e o nível de satisfação chegava sempre ao topo.
À noite dormíamos que nem uns anjos. O corpo estava cansado da brincadeira, das correrias, do exercício que tinha sido feito. Eram noites santas, repousantes e as almofadas, por mais duras e desconchavadas que fossem, eram templos de calma e sossego. Caímos na cama, quais pedregulhos, mas tão contentes do dia vivido que o repouso era imprescindível para as aventuras seguintes.
Depois a vida começou a complicar-se, a tornar-se complexa e de difícil compreensão. Crescemos e a socialização ganhou em relação à despreocupação. Tínhamos regras a cumprir e a vida apresentava-se à nossa frente, com um tom intimidatório e autoritário. Tínhamos de lhe obedecer. Uns souberam ouvir e outros nem por isso. Escolhas que cada um fez ou teve que fazer.
Que saudades destes tempos de pura felicidade! O pouco era suficiente e chegava para todos. Cada um de nós seguiu o seu caminho, uns nos caminhos correctos e direitos, outros por trilhos complicados e outros já foram ceifados, nesta seara gigante. Nem chegaram a crescer ou não souberam. Sinto que me fazem falta, que um pouco de mim se evaporou e não chegou a fazer o efeito necessário. Aqueles pedaços de céu eram de todos!
Do simples passou-se ao complicado. Começou com um pequeno nó, a que se acrescentou outro e mais outro e agora, quando olho, vejo um novelo gigante, repleto de nós impossíveis de desatar. Mesmo que exista vontade de o desatar ele volta a fechar-se e os nós ficam ainda mais sólidos.
Ficam as memórias, os tempos, as experiências, as realidades, a nossa construção enquanto seres. Soubemos aproveitar aquilo que tínhamos e foi muito bom. Porque é que já não somos assim? Pois é… crescemos. A vida ganha sempre, mas as nossas memórias, aquilo que guardamos, continuam sempre únicas e extraordinárias naquele patamar tão formidável e maravilhoso que chamamos de nostalgia.