Não existem paraísos, mas a memória pode fornecer recordações tão perfeitas, daquelas que fazem viajar, que tudo se ajeita de modo a voltar onde se foi feliz. A infância tem cores simples, cheiros fortes e sons que não podem ser ignorados. A nostalgia pode ser um bálsamo que tempera os tempos que não voltam, mas ainda têm préstimo para brilhar.
Morei num prédio com cinco andares e sem elevador. Os degraus eram imensos e subiam-se com facilidade. Era jovem e tão leve que nada custava. Agora dói imenso a saudade. Tantas foram as vezes que os calcorreei que me esqueci de os contar. De madeira boa, como ouvia dizer, nunca se partiram nem desfizeram. Patamares largos e simpáticos, convidavam à conversa e ao riso dos mais velhos, os que já nem se recordavam da juventude.
No rés do chão morava o senhor Pires e a sua família, a D. Júlia e os filhos. Eram eles que exploravam a mercearia, um local cheio de magia e de coisas maravilhosas. As tulhas eram a minha perdição. Olhava para o feijão e o grão com respeito e alegria. Para mim eram meninos em conversa amena e a tentação seria não colocar as mãos lá dentro.
Nesta casa entravam todo o tipo de clientes e o senhor Pires sabia a todos chegar. Entre bacalhaus pendurados e utensílios de folha, aqui era o encanto da visão. Imaginava histórias mil e o cheiro bom ainda aqui mora. Os cartuchos de papel pardo, onde se colocavam os ovos, delicadamente, seriam chapéus de recordar. Fiambre cortado à fatia e dois dedos de conversa: “como vai o seu marido?”
Naquele tempo os homens não se aventuravam neste território feminino e, por isso, as senhoras eram disputadas como troféus. Também havia as criadas, de farda completa, que tratavam do avio das casas e que se tomavam de ares quando a coisa não lhes interessava. Bastava estar de olhos abertos para se perceber como a vida fervilhava.
Por aquela altura era comum a contabilidade organizada e perfeita, uma tão clássica forma de viver: o livro de mercearia, onde o deve e o haver estavam bem escarrapachados para serem pagos ao fim do mês. Bem, em alguns dos casos nem sempre, mas isso são outros quinhentos que agora não servem para recordar. A vida era dura para uns e menos má para outros. Diferenças que ainda hoje não se esbateram.
No primeiro andar, vivia um senhor que conduzia um carro curioso. Comprido, com rendas por dentro e bancos bem tratados, chamava a atenção de todos. O homem andava sempre vestido com um fato escuro e pouco me lembro de quem mais lá morou. Estar a morar paredes meias com um cangalheiro não deixa uma memória de alegria, apesar da educação de quem lá habitava.
No segundo andar vivia a D. Luísa, uma senhora velhinha que já nem saía da cama. Muito doce, de cabelo branco encaracolado e de olhos de cor já perdida, fazia-me sempre festas no cabelo e gabava as minhas tranças que chegavam aos bolsos. A sua voz era de aceitação da passagem do tempo e a sua criada, uma senhora amorosa, cuidava dela com tanto amor e carinho que ninguém diria ser patroa e empregada. Profissionalismo que se transformou em amor.
No terceiro andar era o reino da D. Clementina, nome que lhe assentava que nem uma luva. Sempre muito bem arranjada, como se fosse para uma festa, de lábios e dentes pintados de vermelho, divertia-me imenso. Uma simpatia de senhora que não tinha casado, ou seria viúva, mas nada a abalava. Como a casa era muito grande, tinha um quarto alugado a um senhor que cheirava muito bem e que, mais tarde, percebi ser hermafrodita.
Quarto andar. Durante muitos foi a casa da doutora, uma senhora muito fina e elegante que, segundo me recordo, trabalhava no hospital de Santa Maria. Um pouco pedante, tinha laivos de alegria em momentos inusitados. Uma pobre desgraçada, na verdade. A filha, uma jovem dos tempos modernos, ousava nas roupas e, pasme-se! até fumava. Onde se viu uma coisa destas? E bebia, que bem me recordo de alguns episódios em que não acertava com o andar.
Depois da morte da mãe, a filha, uma esgrouviada de tamanho gigante, num acesso de fúria, partiu todas as porcelanas e cristais que restavam e esfaqueou todos os quadros que eu tanto gostava de admirar. Quanto às mobílias, coitadas, tiveram um destino atroz. Tanto ódio que ali havia. Mais tarde vieram morar outras pessoas que ficaram com o karma das anteriores: um filho sem eira nem beira e uma filha que ainda hoje não acertou os alqueires todos.
No andar cimeiro era a minha família. Um andar inteiro, que naqueles tempos não se fazia a coisa por menos. Casa onde tantos tinham porto de abrigo de conversas e ainda segredos que as paredes escutaram. Não me recordo do meu avô velhinho, mas da avó tenho as melhores recordações. Pais, filhos, avós, primos e tantos, por ali desfilaram como se fosse uma passadeira vermelha. Alegria em doses reforçadas.
Prédio de esquina, antigo, seguro, masculino, controlava as ruas e sabia o que se passava em todo o lado. Havia conversas de janela, de uma rua para a outra, cuidava-se dos vizinhos, especulava-se sobre a vida de tantos, namorava-se com criadas e magalas, contavam-se vidas que não eram de ser sérias. Um pequeno mundo ali, mesmo à mão de semear e de aproveitar.
No prédio em frente, na esquina oposta, era outro poiso das donas de casa e das criadas internas. Alguns homens arriscavam a sua sorte. Uma drogaria, com o senhor Américo ao balcão, que tinha solução para tudo menos para a morte. Solícito e despachado, queria evoluir e tinha sempre novidades, o que fazia com que a loja estivesse sempre cheia. Mais tarde mudou o ramo de negócio.
Ao lado era a tasca, a taberna, que cheirava a vinho carrascudo e a bifanas feitas com tanta gordura que empestava a rua. Agora sinto-lhe o paladar, mas, na altura, dava-me vómitos e, ao mesmo tempo, sentia uma enorme atracção por aquela casa que estava sempre cheia de homens, o oposto da mercearia. Tinham ar de dia anterior, mas isso até era pitoresco. As crianças recordam-se de coisas que mais ninguém viu.
No primeiro andar era o fotógrafo, a casa onde todos passavam para deixar a marca. Ou era para a entrada na escola ou para enviar algumas fotografias, deliciosamente ingénuas, para padrinhos e familiares. A senhora que tinha o dom de as produzir, merecia todo o tempo que demorava. Simpática, atenta e encantadora, fazia com que aqueles arrepios de cabelo e posturas tortas valessem a pena. Tinha um filho no Canadá e falava dele amiúde.
Tanto que há ainda para contar, mas vou fechar o velho livro das recordações. Não que me sinta triste com tudo, mas por querer voltar a parar o tempo, por mais um pouco. Revivo tudo com satisfação e ardor, os dias de imenso sol e de descobertas. Foi ali que tudo começou e a obra nunca está completa. Estes farrapos de felicidade são mesmo excelentes para se saborear.