A Ditadura da Felicidade

Vivemos numa época paradoxal. Nunca a humanidade teve tanto acesso a conforto, informação e possibilidades de escolha, no entanto, raramente se observou uma sociedade tão ansiosa, insatisfeita e emocionalmente frágil. A busca desenfreada por felicidade e prazer imediato é acompanhada por uma profunda incapacidade de lidar com a dor, a frustração e o vazio. No perfil de gastos, num relatório europeu mais amplo, para 2023 Portugal aparece com cerca de 48,4 milhões de euros em vendas de ansiolíticos (ou medições equivalentes) — ou seja, um volume significativo (ReportLinker).

À luz da teoria do Yin-Yang, da filosofia chinesa, esta realidade pode ser entendida como o sintoma de um desequilíbrio profundo entre as forças complementares que regem a vida. Segundo esta sabedoria taoista, o universo e o ser humano são regidos por duas energias fundamentais: Yin, associada à quietude, à introspeção, à sombra e à passividade; e Yang, relacionada com a luz, a ação, a expansão e o exterior. O equilíbrio dinâmico entre essas duas forças é o que garante a harmonia da existência. Quando uma das dimensões domina, instala-se o desequilíbrio e, consequentemente, o sofrimento.

No mundo contemporâneo, observa-se a predominância do Yang, traduzida mais de estímulos, de exposição, de produtividade e de prazer superficial. Vivemos voltados para o exterior, para a aparência, para a validação social, esquecendo o Yin, isto é, o silêncio, o recolhimento, a aceitação e o vazio que também fazem parte da vida.

A chamada “ditadura do prazer” manifesta-se especialmente nas redes sociais, onde o ideal de felicidade tornou-se uma imposição estética e emocional. Publicam-se imagens de viagens, festas e corpos perfeitos, como se a alegria fosse uma condição permanente. O sofrimento é silenciado, a vulnerabilidade é escondida, e o “ama-te” das frases motivacionais esconde, muitas vezes, a dificuldade real de o fazer. Este comportamento coletivo reflete o domínio do Yang: a exaltação da luz sem o reconhecimento da sombra, o movimento constante sem pausa, o prazer sem dor. No entanto, a própria filosofia do Yin-Yang ensina que um extremo contém sempre a semente do seu oposto. Assim, quanto mais se tenta negar a tristeza, mais ela se acumula no inconsciente e retorna sob a forma de ansiedade, depressão e esgotamento.

A sociedade contemporânea, ao valorizar apenas o prazer, esquece que a dor é parte essencial da experiência humana. É no contraste que se gera o sentido. Só compreendemos a felicidade porque conhecemos a tristeza, só apreciamos o descanso porque vivemos o cansaço. A tentativa de eliminar o sofrimento equivale, na linguagem simbólica do Yin-Yang, a negar metade do círculo da existência. O resultado é um ser humano fragmentado, que vive na superfície das emoções e teme confrontar-se com a sua própria interioridade. O consumo excessivo de ansiolíticos, antidepressivos e estimulantes é, neste contexto, uma tentativa de silenciar o Yin, de anestesiar a dor, em vez de a compreender como parte do processo natural da vida.

Recuperar o equilíbrio implica reconciliar as duas forças. É necessário redescobrir o valor do silêncio, do tédio e da solidão como espaços férteis de autoconhecimento. O Yin não é fraqueza: é o tempo de recolhimento que alimenta o Yang da ação. Do mesmo modo, o prazer não deve ser condenado.

 O Yang é essencial à vitalidade e à criatividade, mas precisa ser temperado pela consciência do limite e pela aceitação do efémero. A harmonia não se alcança pela exclusão da dor, mas pela integração dos contrários.

A sabedoria consiste em habitar o meio-termo, em viver os opostos de forma complementar e não como inimigos. Em vez da ditadura da felicidade, o desafio contemporâneo é recuperar a liberdade do equilíbrio e cultivar a lealdade nas relações com o mundo e com os outros.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico.

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