Bacalhau: o fiel amigo que divide mesas e paixões

Segundo a tradição há pratos que definem um país. Em Portugal, o bacalhau ocupa esse lugar tão peculiar: símbolo de casa, de festa, de tradições e até de contradição quando não reúne consensos.

A sua história remonta aos povos do Norte que secavam o peixe ao vento e ao frio; os bascos aperfeiçoaram a salga; os portugueses democratizaram-no a partir dos séculos XV e XVI, quando as viagens atlânticas levaram as nossas naus aos Grandes Bancos da Terra Nova.

O bacalhau consolidou-o no quotidiano das famílias, mais tarde, a sociedade portuguesa denominou o bacalhau de “fiel amigo”. O bacalhau tornou-se, com o tempo, tradição cultural nas casas portuguesas, nas consoadas, encontrou o seu espaço na tradição e na “língua” da gastronomia. Quando pensamos nas tradições, para além da cortiça, do azeite, do pão, o bacalhau assume um papel preponderante na gastronomia portuguesa.

Se assumiu, por um lado, as raízes históricas de um país de grande costa atlântica, por outro o bacalhau assume um lugar de destaque na chamada “gramática” da culinária portuguesa – lasca-se à Lagareiro, desfia-se à Brás, enriquece assados, cozinha-se em baixa temperatura, reconcilia-se em natas e emociona em Gomes de Sá. É esta versatilidade na culinária que o tornam único e, até diria de irresistível: aprimora-se com o dente do alho, envolve-se na doçura e nas camadas da cebola, na rusticidade do pão e no conforto do azeite. Resiste a viagens e conserva-se sem pressa, uma herança útil de um país que aprendeu a domar o tempo.

Contudo, o mito tem as suas arestas. O bacalhau é amado ou detestado – assume raramente os dois. Para muitos, o sal que o cura é memória; para outros, um obstáculo: exige demolha cuidadosa, disciplina no tempero e respeito pelo ponto de cozedura. O cheiro é intenso, mas é de presença dominadora quando conquista o paladar dos portugueses.

Do ponto de vista nutricional, o bacalhau é proteína magra e de qualidade; porém, o teor de sal pode ser excessivo se a técnica falha e torna-se nefasto para a saúde.

No prato económico, já não é o parente pobre de outrora: a valorização do produto e as incertezas das pescas tornaram-no, por vezes, um luxo. E há o debate incontornável da sustentabilidade: não basta tradição, é preciso garantir origens responsáveis e transparência na cadeia.

Na restauração, o bacalhau arrisca, muitas das vezes, a repetição. A facilidade de o vermos em tantas ementas gera fórmulas cansadas, disfarçadas de tradição. Esta não deve ser encarada de rotina, mas uma exigência de se fazer sempre melhor.

Um bacalhau mal demolhado, seco, salgado em excesso ou “afogado” em natas tristes não convence ninguém. O mesmo alimento, tratado com rigor, com a cura certa, lasca húmida, azeite vivo, cozeduras precisas — confirma, sem dúvida, porque ganhou o lugar de destaque a que tem direito na gastronomia portuguesa.

Vantagens? Identidade, versatilidade, conservação, valor proteico, afinidade com o nosso paladar mediterrânico. Desvantagens? Preparação exigente, risco de excesso de sal, preço por vezes elevado, impacto ambiental se a origem não for certificada, saturação de ementas nos restaurantes.

Entre o amor e a rejeição, há um território a explorar: cozinhar com consciência, mantendo as tradições culturais.

O futuro do bacalhau em Portugal depende dessa maturidade de sabermos conservá-lo no tempo. O bacalhau vai continuar a ser celebração na nossa sociedade, se mantivermos a exigência técnica, escolhermos pesca sustentável e educarmos o consumidor a consumi-lo com critérios de qualidade .

O bacalhau, de “fiel amigo” a essencial, torna-se um mito quase intocável, traz as melhores tradições da nossa mesa: há quem o adore e também quem o deteste, cada um tem o seu gosto, mas o convite impõe-se sempre para uma experiência gastronómica e cultural.

O bacalhau foi denominado de ‘fiel amigo’, por estar sempre presente e nunca faltar por não se deteriorar.” In “As Minhas Receitas de Bacalhau: 500 Receitas (2012)”, do Chef Vítor Sobral.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico.



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