8 1/2

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No âmbito da nona edição do 8 1⁄2 Festa do Cinema Italiano que se realiza em Lisboa entre 30 de Março a 7 de Abril, chegou às salas de cinema a cópia restaurada do clássico 8 1⁄2, realizado por Frederico Fellini. 

Como começar uma análise cinematográfica sobre um filme que é em si mesmo uma análise cinematográfica? Como mergulhar no interior de uma mente criadora de imagens em movimento, através de imagens em movimento? Como fazer cinema, e o que é o cinema? Ora, após o visionamento de 8 1/2 provavelmente serão estas as perguntas que terá muita dificuldade em responder. Na verdade, quase todos já ouvimos falar de 8 1/2, o filme mais importante sobre o processo de criação e concepção de um filme (venceu surpreendentemente o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro), mas se não é o seu caso o melhor é aproveitar a cópia restaurada que chegou esta semana ao cinema e desfrutar da sessão.

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Para começar, 8 1/2 parte de um enredo bastante simples: Guido Anselmi (o brilhante Marcelo Mastroianni) é um cineasta em profunda crise de criatividade e, por sua vez, de identidade. Só por isso perceberemos que no decurso de toda a obra, o cinema será a arte mais exposta no ecrã, mas se o cinema se imprime na vida deste homem, será que assistiremos ao sentido da sua vida, ou a uma mera construção? Bem, na realidade, 8 1/2 diz respeito a essas duas dimensões, revelando ser uma manifestação, quase grito do seu realizador, do qual Guido impõe-se como alter-ego. Na verdade, a carreira de Frederico Fellini tinha entrando em colapso após a semelhante queda do neo-realismo, género que o tornara no nome de peso que era – tinha sido argumentista de um ou outro filme de Roberto Rossellini. Depois de La Dolce Vita (1959), Fellini sentia-se perdido, não sabia que história contar, daí a necessidade de virar a câmara para si mesmo para mostrar o estado mental em que se encontrava naquela fase tão angustiante. O resultado é uma persistente e ousada construção em abismo, já que 8 1/2 espelha a sua vida, a vida de uma personagem e a vida das imagens em movimento. Nele é-nos oferecido o passado e o futuro da sétima arte que na época tinha quase de 65 anos.

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Deste modo, em 8 1/2 contactamos com figuras marcantes da infância do protagonista – amas, padres, prostitutas, crianças amigas, mãe e pai – e aquelas que tem alguma dificuldade em lidar no “presente” – a mulher extremamente intelectual Luisa (Anouk Aimée), a sensual amante Carla (Sandra Milo)  que ironicamente só se preocupa com o marido, a musa quase fantasma Cláudia (Claudia Cardinale) e um aglomerado de produtores, jornalistas e outras tantas mulheres – que giram em redor da personagem principal, como se fosse a estrela mais cintilante de todas. São essas figuras, que permitem Guido vaguear entre os seus pensamentos, para ter um possível clique de criatividade e que tendem a esbater quaisquer fronteiras que existam entre sonho, memória, desejo e realidade – os planos são inconclusivos, com demasiados flashbacks e flash-forwards. A confusão instala-se desde logo com a primeira sequência do filme (será que o sonho termina aqui ou prolonga-se?), no qual Guido, no interior de um carro parado no trânsito, sufoca e é observado pelos olhos esbugalhados de alguns dos elementos acima citados, que por segundos surgem em fotogramas estáticos. Depois, Guido estás nas nuvens e é pescado por alguém em terra. Independentemente das conclusões filosóficas que encontre nas leituras que deve porventura fazer, estes instantes parecem mostrar-nos como alguém que vive em êxtase para o cinema, em felicidade onírica e celestial  é sempre chamado por alguém com os pés bem assentes na terra, pelos cépticos.

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Entretanto, a análise da psique de Guido pode ajudar na leitura que faz do filme. Psicanalistas como Carl Gustav Jung e Sigmund Freud tentaram definir a noção de trauma, e este último aquando das seus estudos da hipnose sugeria que uma das melhores formas para o enfrentar seria relembrando-o. É isso que Fellini faz, enfrenta o trauma (talvez fosse a questão religiosa o seu maior tormento) só para conseguir seguir em frente. Inclusive, esse trauma tem toques de todos os géneros cinematográficos, acompanhados pela sempre riquíssima banda-sonora de Nino Rota, ora mais poética ora mais espalhafatosa como num circo. Nesse ponto de vista também percebemos o porquê da cenografia e a existência de um gigante molde de uma nave espacial a consagrar a conquista de outros mundos que estaria para breve – a chegada à lua pelo Homem ocorreu nos finais da década, em 1969.

De salientar ainda uma a aproximação de 8 1/2 à noção de “filme-ensaio” (muito trabalhada pelo investigador brasileiro Ismail Xavier) crescente a partir dos anos  60, no qual acrescem produções que em simultâneo são obras de entretenimento como objectos de análise do mundo. Outro aspecto, é a importância do tão pouco valorizado Nine, de Rob Marshall – baseado no musical da Broadway que teve origem em 8 1/2 -, que em tom classicista homenageia o cinema de Fellini e as influências exuberantes e burlescas do cinema italiano sobre o de Hollywood, como a música “Cinema Italiano” escrita directamente para o grande ecrã, suscita, em ritmo corporal e voz acesa de Kate Hudson.

Comparações à parte, 8 1/2 oferece quase duas horas e vinte de uma experiência que tão cedo não esquecerá, prova de uma arte que se concebe como monumento, e que terá sempre muito mais para dar ao mundo como o mundo (real ou imaginário) terá para lhe oferecer. Enfim, no final todos se movem em círculo, porque filmes vêem e filmes vão, criados pela arte que jamais queremos que termine.

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poster do filme

Ficha técnica
Ano de Produção: 1963/ Título português: Fellini 8 1⁄2/ Título original: Fellini 8 1⁄2/ Realizador: Frederico Fellini / Argumento:  Ennio Flaiano & Tullio Pinelli  & Federico Fellini & Brunello Rondi / Elenco: Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo, Rossella Falk, Barbara Steele, Madeleine Lebeau, Caterina Boratto, Eddra Gale, Guido Alberti / Música: Nino Rota/ Duração: 138 minutos

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