1 tuga para ler: Coisas de Loucos, de Catarina Gomes

Quando comecei a pensar de que livro iria falar neste artigo, vieram-me à cabeça alguns nomes sonantes que tenho na estante: Paul Auster, Pearl Buck, Margaret Atwood. São nomes que enchem o olho e as prateleiras (as minhas e as das livrarias). Depois, olhei para as duas pequenas prateleiras onde reúno os autores portugueses que vou lendo. Todos maravilhosos. Alguns clássicos. Alguns (não tão) conhecidos.

Decidi assim que vou reservar este espaço para falar sobre autores portugueses. Numa altura em que os portugueses lêem cada vez menos, é preciso reconhecermos que temos tantos, tão bons, com tanto potencial. Nasce assim uma rubrica chamada 1 Tuga para Ler, onde pretendo partilhar convosco obras de autores portugueses contemporâneos. Ficam para ler?

O que eles deixaram no manicómio

Deixem-me apresentar-vos a autora do primeiro livro desta rubrica. Catarina Gomes é jornalista, trabalho pelo qual já foi galardoada com o Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha. No currículo, para além dos trabalhos de jornalismo narrativo (que podem consultar no site Vidas Particulares), a Catarina conta com 3 livros no currículo: Pai, Tiveste Medo? (Matéria-Prima, 2014), Furriel não É Nome de Pai (Tinta-da-china, 2018) e Terrinhas (Gradiva, 2022).

Coisas de Loucos nasce da descoberta acidental de uma caixa de objetos de antigos doentes do primeiro hospital psiquiátrico português, o Miguel Bombarda. Inaugurado em 1848, também conhecido por Hospital de Rilhafoles, a instituição foi, durante décadas, considerada vanguardista na psiquiatria e no estudo das doenças mentais. Isto numa altura em que a esquizofrenia era motivo suficiente para isolar o doente por completo da sociedade e em que os choques elétricos eram considerados um tratamento.

Desativado progressivamente, até ser encerrado por completo em 2012, os pavilhões que compunham o Hospital Miguel Bombarda continuam a existir, embora ao abandono, e fazem parte do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa.

O livro oferece-nos não só um retrato da evolução do cuidado da saúde mental em Portugal, como uma paisagem da realidade portuguesa no final do século XIX e início do século XX. Catarina parte dos objetos encontrados numa caixa para apresentar a vida de 8 pacientes da instituição. Entre eles, temos uma modista, um empresário, um jovem vindo de famílias abastadas. Não há distinção de sexo, estatuto ou idade. A doença mental é o único fator comum.

Desorientados, proscritos, sem-abrigo, criminosos – o Hospital Miguel Bombarda serviu de depósito de indivíduos que, por alguma razão, aparentavam “não estar bem da cabeça”. A maioria não via efeitos positivos dos tratamentos feitos à altura e não eram raros os casos de pessoas que ficaram internadas para o resto da vida. E se, para alguns, o internamento foi o princípio do fim, outros foram que lutaram até ao fim pela libertação e por aquilo que consideravam ser verdade.

Este livro não é uma obra de ficção. É, sim, uma narrativa jornalística que demorou 8 anos a terminar e que, de tão bem escrita, nos transporta para as vidas destes pacientes como se de uma história se tratasse. Sinto que nenhuma palavra que possa escrever faça justiça a este livro. Deixo-vos algumas passagens para aguçar o apetite.

“Leopoldina dormia nas escadas largas de pedra fria deste prédio. É o guarda nº 3094, José Guerreiro, quem a leva presa «para averiguações», «em virtude de ali se encontrar abandonada a dormir» e de «não lhe ser conhecido qualquer meio de vida por onde possa angariar meios de subsistência para se manter», lê-se no ofício. À época, a polícia tinha poderes para deter quem era encontrado na rua sem casa nem forma de ganhar a vida.”

p. 54

“Se Simão de Carvalho Proença tivesse conseguido chegar ao sítio para onde se destinaria naquele dia, quando seguia junto à linha de caminho-de-ferro, o que procuraria já teria ido abaixo. (…) Tudo o mais que tinha deixado naquele local há quase 40 anos, no tempo das fotografias a preto-e-branco que guardava na carteira, deixara de existir.”

p.91

“Numa enfermaria-prisão em forma de anel vive durante décadas um homem que um dia foi bailarino.”

p. 149

Boas leituras!

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico

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