Trazíamos connosco a ideia de que esta não teria de ser uma luta do nosso tempo. Não no país de Abril, esse que supostamente não esquece a noite de quarenta e oito anos que nos custou demasiadas mortes e demasiada vida. Essa era a batalha dos nossos avós, que por amor nos legaram uma alvorada tecida de luz e liberdade. Precisamente para que não voltássemos a imergir na sombra. Para que essa não fosse uma luta do nosso tempo.
Contudo, a raiva voltou a sair à rua. Medimos-lhe o pulso nas urnas e percebemos: o fascismo é uma ameaça que também pertence a esta era. Não é uma conclusão de agora, mas deixámos de a poder adiar. É, pois, o momento de dizer presente. E não se enganem, sabemos bem de que lado estão os que dizem estar de lado nenhum. Incluindo os órgãos de comunicação social.
Desconstruamos de uma vez o mito da neutralidade no jornalismo. Não existe, não tem de existir. Não quando a matéria em foco diz respeito à defesa dos Direitos Humanos e da democracia. Não quando a voz que se faz ecoar é a de um projeto político autoritário, demagogo, segregacionista. Não quando os holofotes se direcionam a quem, sem temor, ousa ameaçar as liberdades constitucionalmente consagradas (a de imprensa à cabeça, já agora).
Não se trata de um apelo à censura ou ao silenciamento da extrema-direita. Trata-se de exigir dos órgãos de comunicação social uma outra postura que não a de reverência perante a agenda do protagonista político que mais audiências garante — luta perdida à partida quando a precarização da classe se continua a aprofundar. A obscenidade é sedutora, sabemo-lo. Resistir a essa tentação mercantil é imperativo.
Precisamos de órgãos de comunicação social empenhados num trabalho de contextualização, aprofundamento, escrutínio, investigação e — sem medo de o dizer — combate democrático. Jornalismo combativo, ao serviço da comunidade. Jamais subserviente, jamais pé-de-microfone-que-ouve-e-não-interroga, jamais adormecido.
Contudo, a luta não se faz só no palco mediático. O contexto pandémico e a crise social e económica que se avizinham facilitam-nos as premonições. Crescerá o descontentamento e, com ele, o ódio. Os alvos foram anunciados: o monstro da raiva alimenta-se da homofobia, da transfobia, da misoginia, da xenofobia, do racismo, da ciganofobia. Para o defrontar, precisaremos de chama na defesa radical do humanismo. Ninguém solta a mão de ninguém.
A convergência das forças democráticas será determinante. Importa que não nos esqueçamos das ilações centrais a retirar deste ato eleitoral: do perigoso taticismo autocentrado do primeiro-ministro à irresponsável desvalorização das presidenciais por parte do próprio Presidente da República, passando pela incapacidade da esquerda para se unir em nome de um bem maior ou pelo embaraçoso esvaziamento ideológico da direita democrática (podemos escusar-nos ao ridículo exercício de explicar por que motivo não é aceitável negociar com forças fascistas).
Esta será uma das lutas do nosso tempo, mas não a saberemos travar se não nos munirmos de memória, fraternidade e amor. É urgente lembrar e cumprir Abril todos os dias. Combater a discriminação, a pobreza, a cada vez mais obscena desigualdade económica. Assegurar o acesso à cultura e às provisões públicas na saúde e na educação. Promover a justiça climática, sem andar a brincar às lavagens verdes de programas políticos. Só assim veremos uma nova alvorada.
Peitos inflamados de liberdade: as flores ainda vencem canhões.