Há momentos simples na vida que são como “lufadas de ar fresco”, “cores arco-íris com unicórnios esvoaçantes” por nos proporcionarem sorrisos, mesmo nos dias cinzentos.
Gosto de viajar em transportes públicos pela oportunidade que oferece de poder observar e escutar as conversas dos passageiros e adivinhar as suas histórias de vida, uma miscelânea de vivências e sonhos por realizar ou já realizados. Sentamo-nos lado a lado com desconhecidos e, entre malas, cheiros de sandes e o ruído do motor, há sempre uma história a ser contada.
Foi durante uma viagem destas que fiz várias viagens numa só e consegui vislumbrar um retrato em movimento do mundo.
Entraram, a certa altura, três pessoas que se sentaram lado a lado e, sem saberem, ofereceram-me a oportunidade de fazer uma reflexão sobre diversidade e humanidade.
Um senhor sessentão, charmoso, bem-falante, senta-se e trava conversa com uma senhora brasileira, mais ou menos da mesma idade, que muda logo de lugar para ficar a seu lado. Ele apresenta-se: chama-se João, é músico, toca violão (samba, forró, que adora; o sangue africano e brasileiro corre-lhe nas veias), trabalha principalmente em animação de casamentos. Nasceu em Moçambique, filho de brasileiro e moçambicana. Diz que pertence à classe dos retornados e pergunta à senhora se sabe o que isso significa. Ela abana a cabeça, em sinal de desconhecimento. Ele explica-lhe. Mora em Montpelier, França.
Quando vê que a senhora é oriunda do Brasil, passa a usar o seu sotaque brasileiro. Nota-se que é um bon vivant e reflete uma alegria de viver genuína e contagiante. Gosta de viagens, de praias, de boa comida condimentada como a marroquina, paquistanesa e também refere que a francesa é mesmo muito boa e especial. Conta, com um brilho nos olhos, sobre os três filhos e em especial diz que a filha vive em Londres, trabalha numa galeria de arte e adora, tem algo que a distingue que é um olho de cada cor (mostra a fotografia no telemóvel, com orgulho), sublinha que é uma pessoa fora da caixa, que prefere namorados de ambos os sexos do que o casamento. Fala sobre o neto de quatro anos que mora no Brasil e na intenção de, depois da aposentadoria, mudar-se para junto dele. Veio visitar a mãe e relembra que no ano passado, pelo Natal estava sol em Portugal e mostrou uma fotografia com ela na praia.
Irene, a senhora brasileira reformada, tem um semblante doce. É dona de roças verdejantes e de longas histórias de viagens. É a quarta vez que visita Portugal e conhece o país de lés a lés, trinta e três cidades, diz com orgulho. Exibe a foto da sua neta, de cinco anos, que adora a avó e é quase inseparável.
Viaja agora rumo a Londres, depois Paris. Vai ainda fazer um cruzeiro e estará em breve também em Barcelona e Marselha, com uma amiga. Frisa, a certa altura, que trabalhou trinta e dois anos e que já bastou. Agora afirma que “a vida é para ser vivida”. Contrariamente ao companheiro de viagem, não aprecia comidas muito condimentadas nem mostra interesse por aventuras gastronómicas. Contudo, saboreia cada conversa como quem colhe frutos maduros.
Atrás, uma jovem paquistanesa, da qual só consigo ouvir uma vozinha doce com pronúncia oriental, ouve atentamente. Interceta a conversa, quando ouve falar em comida condimentada e pergunta ao músico se sabe falar inglês. Este gagueja um pouco e entre inglês, francês e português, a paquistanesa consegue estabelecer uma troca de impressões sobre a gastronomia do Paquistão.
Explica que está em Portugal há dois anos para completar o seu doutoramento em Matemática na Universidade de Aveiro, ao que se ouve uma exclamação de admiração.
Quando o tema é gastronomia, os seus olhos iluminam-se. Recorda, com saudade, o cheiro das especiarias e regressa, por instantes, ao seu país, à sua família com quem não está desde que chegou. Exibe, com orgulho, fotos registadas no seu telemóvel nas quais mostra: uma festa em sua casa com os seus amigos: travessas coloridas, arroz, caril, pão fresco; os pais e ela própria, vestidos com os trajes típicos do Paquistão. As vozes dos dois interlocutores enchem-se de exclamações e elogios perante tanto colorido e beleza.
Falam sobre Paris, uma cidade maravilhosa, mas concordam que não é boa para morar. Montepelier, perto de Marselha, no sul da França, diz João, é quase um mini Brasil, onde há praia e se pode andar de chinelos e calções.
A propósito do Brasil, recordam o perigo dos assaltos, em especial no Rio de Janeiro.
O músico narra uma peripécia: foi vítima de uma tentativa de assalto em pleno dia, nesta cidade que é maravilhosa, tal como Paris, não fossem os perigos. Numa ida para a praia, de chinelos e calções de banho, defendeu-se dizendo que não tinha dinheiro, era músico. Os assaltantes acabaram por levar os únicos objetos disponíveis: as chinelas havaianas. Falam, então sobre o comércio da marca Havaianas e sobre o custo absurdo dos famosos chinelos fora do Brasil.
Irene torce o nariz e diz que não gosta e não usa.
A conversa alarga-se e o tema desemboca na quantidade de brasileiros que moram em Portugal.
No fim do meu trajeto, quase a chegar à Figueira da Foz, João e Irene exclamam “Que cidade bonita! Já cá passei.”. Não nego que o orgulho me enche o peito.
O autocarro continua o seu caminho, mas algo ficou: a impressão de que o mundo se encontra nas estradas e nas conversas. Vivemos tempos em que as fronteiras se tornam muito ténues. Portugueses, brasileiros, paquistaneses, moçambicanos, franceses, a mistura das nacionalidades, todos se cruzam, influenciam e descobrem. E esse facto torna-nos a todos mais ricos.
Às vezes, basta uma viagem curta para percebermos que a globalização não é apenas um conceito económico, mas uma experiência humana, feita de vozes, sabores, cores, cheiros e memórias partilhadas.
Vivi uma parte da infância e adolescência em África e ainda sinto em mim as sensações dessas fantásticas cores, sabores e cheiros. Conheci Paris e fiquei deslumbrada para sempre.
Enquanto o autocarro estaciona, penso em como esses encontros simples dizem tanto sobre nós: diferentes, sim, mas, curiosos, faladores, prontos a admirar o outro e, talvez, sem dar conta, a reconhecer-nos um pouco nele.
Num tempo em que as diferenças tantas vezes servem de fronteira, é reconfortante lembrar que a empatia pode nascer num banco de autocarro. Viajar, afinal, não é apenas mudar de lugar, é mudar de olhar. Ao escutar o outro, ao saborear o que é diferente, reconhecemos que o mundo é maior e mais belo quando o vemos através das histórias dos outros. Talvez a convivência multicultural não precise de grandes políticas, mas apenas de pequenas conversas sinceras entre desconhecidos, dessas que fazem uma viagem parecer curta demais.
Esta pequena digressão, fez-me, por momentos, viajar mais longe. Lamentei não poder continuar o percurso e travar impressões pessoais com estes passageiros tão repletos de experiências.
Mas ficou em mim esta reflexão feliz: o mundo inteiro pode estar numa simples viagem de autocarro através de uma simples conversa.
Nota: Este artigo foi redigido segundo as normas do Novo Acordo Ortográfico.