Elvis

Não há vidas desinteressantes, ouvi um dia, apenas vidas menos barulhentas que outras. A dele é carregada de silêncios, longos, vagarosos, pesados. Até o cabelo, numa espécie de Elvis decadente, imune ao bater vento, silencioso.

Vejo-o regularmente encostado a uma parede, a um poste, um automóvel, junto ao hipermercado onde eu abasteço a dispensa e ele abastece a solidão. Muitas vezes suspeito que sejam as paredes, os postes e os carros a posicionarem-se ao seu redor, já ele me parece imóvel. Não fosse o leve sorriso de agradecimento que esboça quando a moeda lhe toca na palma e passaria por estátua.

Às vezes olha-me, mas julgo que não me vê. Imagino de quantas vidas se fez a sua vida e não chego a conclusão alguma. Terá nascido com o carimbo da miséria colado à pele ou terá esbarrado nela por acidente ou imprudência? Que diferença faz? É-se mais miserável pela certificação do berço do que pela imprudência da vida adulta? Pouco importa.

Ao entrar no hipermercado, perante os múltiplos corredores e a imensidão da oferta esqueço-o. Compro, não compro? Preciso, não preciso? Quero, não quero? Posso, não posso? E no meio destas equações regresso a mim, sou criança e a minha mãe puxa-me por um braço. Os corredores mais estreitos, a oferta menos variada, mas a mesma falta de entendimento sobre tudo aquilo. Não entendo, não entendo o mercado como em geral não entendo a vida e deixo-me ir, ajeitando as garrafas ao fundo, os pacotes uns em cima dos outros numa torre imperfeita, isolando o peixe ao canto para que os odores não se misturem, encaixando uma barra displicente de chocolate e de culpa no meio de tudo.

Ao sair tentando equilibrar os sacos, sou abordada por quem me quer ajudar a equilibrar a vida. A abordagem previsível e sistemática invalida desde logo a mensagem, antes do anúncio de mais um reino divino porvir. São normalmente senhoras de meia-idade em dupla, de ar humilde e gentil, com as revistas fininhas na mão. Quando as avisto ao longe, não tenho dúvidas de que vou ser contemplada e uma revolta pequenina a crescer dentro de mim.

Uma mãe de família de ar cansado, olheiras profundas e uma sacola magra em mãos poderá necessitar de amparo espiritual urgente, talvez um marido violento, um filho que trocou a caneta pela seringa, ou apenas a vida insistindo em esquecê-la. Uma jovem mulher de ar conservador, passos lentos e olhar triste também pode indiciar a necessidade de mão condutora que lhe aponte o caminho a seguir e lhe dê, quiçá, novo sentido à existência.

No caso de um negro, porém, o esforço exigido é menor. Pode ser homem ou mulher, novo ou velho, desde que tenha o ar pacífico que separa os negros aceitáveis dos marginais. Aí não são necessárias as olheiras, a sacola ou o passo lento e olhar triste. A cor da pela garante a necessidade de amparo, de uma mão condutora, de quem pense por eles e para eles, pois que lhes é reconhecida uma fragilidade social e intelectual inerente à cor da pele que ostentam.

Por isso, sempre que as avisto ao longe, uma revolta pequenina cresce em mim e visto uma capa dura e indiferente. Ainda assim não escapo:

– Menina, tem um minutinho…

E a impressão de um sorriso a desfazer-se na boca do Elvis.

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