Elia Kazan – Um Legado Agridoce

Não encontro uma justificação suficientemente madura para tomar a Liberdade como valor fundamental. Não me tem sido vedada (felizmente) ao longo da vida, pelo menos não do modo como outros que, pelo mundo fora, se vêem privados dela. Ainda que não vislumbre a causa para esta valorização, ela acontece-me e sempre que o tema surge no horizonte, seja por via de uma manifestação artística, seja colocado numa situação real, toca-me. Elia Kazan, um dos realizadores mais importantes e polémicos do Cinema norte-americano nas décadas de 40 e 50 (e de todos os tempos), abordou a Liberdade dos dois lados do espelho: aquele em que viveu e o que projectou na tela.

Sendo o trabalho deste homem enquanto realizador tão rico e importante, algumas das razões pelas quais os seus filmes são tão elogiados são as mesmas que levaram a sua atitude, num dado momento, a ser tão criticada: o modo de abraçar a Liberdade (de expressão).

Elia Kazan nasceu no antigo Império Otomano, actual Turquia, em 1909, tendo aos quatro anos emigrado com a família para os EUA. Construiu a carreira no Teatro e no Cinema e em ambos gozou de um sucesso extraordinário. Centrar-me-ei no seu trabalho no Cinema por ser o que conheço melhor e por ir de encontro à questão central da sua vida pública.

Posso começar em 1947, um ano de ouro no seu percurso artístico: foi um dos fundadores de uma das mais importantes escolas de actores do século XX, o Actor’s Studio, cuja forma de trabalhar, que viria a ficar conhecida como “O Método”, revelou alguns dos melhores actores de sempre, entre eles Marlon Brando, James Dean, Montgomery Clift ou Paul Newman. Kazan é o único realizador que colaborou com três ícones d’O Método: Brando, Dean e Clift.

A cena com a t-shirt molhada de Marlon Brando em ‘Um Eléctrico Chamado Desejo’ marcou uma das cenas em que a censura se arrepiou. Hoje parece-nos inócuo mas à data o filme, e cenas como esta, foram uma revolução.

Nesse mesmo ano, estreou-se nos Óscares: A Luz é para Todos foi o primeiro filme a tratar abertamente a discriminação de que os judeus eram vítimas nos anos do pós-guerra. Na história, um jornalista, ao deparar-se com dificuldades na busca de matéria para escrever um artigo sobre o anti-semitismo, resolve fazer-se passar por judeu e é aí que, ao sentir na própria pele a discriminação sobre a qual pretendia discorrer, encontra o material de que necessitava. Os temas polémicos viriam a ser presença constante nas obras de Kazan nos anos seguintes. O filme, que contava com Gregory Peck como actor principal, além da Realização levou também o Óscar de Melhor Filme.

Outra particularidade de Elia Kazan era a sua capacidade para extrair o máximo dos intérpretes: dirigiu vinte e uma interpretações nomeadas para Óscares. Um exemplo disso é o filme Um Eléctrico Chamado Desejo de 1951: numa história “dura” que tratava com coragem um tema obscuro. Blanche Dubois (Vivien Leigh), uma mulher perturbada, visita a irmã em Nova Orleães e a tensão sexual que nasce entre ela e Stanley (Marlon Brando), seu cunhado, não passaram no crivo da censura e o filme teve que ser “retocado” para poder estrear nas salas de cinema. Este marco na luta contra a censura e a obtenção de três Óscares nas categorias de interpretação (apenas Brando não venceu), um feito que viria a ser alcançado somente em mais uma ocasião, fizeram de Um Eléctrico Chamado Desejo um dos filmes mais importantes do século XX.

‘I coulda had class. I coulda been a contender. I coulda been somebody, instead of a bum, which is what I am’, uma das tiradas mais famosas do Cinema (‘Há Lodo no Cais’, 1954).

Este filme marcou também o início da colaboração entre Brando e Kazan: nas três peliculas em que trabalharam juntos nos quatro anos seguintes Brando teve sempre uma nomeação até conseguir por fim levar para casa o prémio em 1954, noutra obra que marcou a história do Cinema: Há Lodo no Cais. Kazan disse uma vez a respeito da performance de Brando que ele tinha feito neste filme a melhor interpretação masculina que havia visto até esse momento. O enredo versava sobre a corrupção no sindicato de estivadores de Nova Iorque e a obra ganhou oito Óscares entre eles o de Melhor Filme, Realizador, Actor Principal e Actriz Secundária.

Os episódios de tensão retratados nas suas películas não baixaram de intensidade no filme seguinte, A Leste do Paraíso, no qual orientou outra lenda do Cinema, James Dean (actor que, na sua curtíssima carreira, apenas participou em três filmes nos quais “recolheu” duas nomeações). A luta entre dois irmãos pelo amor do pai dá o mote para outra obra brutal na adaptação da versão de John Steinbeck da história bíblica de Caim e Abel.

Warren Beatty, um dos poucos artistas de Esquerda em Hollywood mas que permaneceu eternamente grato a Kazan, e Natalie Wood, a malograda actriz cuja carreira estava no auge quando protagonizou ‘Esplendor na Relva’.

O conflito geracional foi também, se bem que de outro ponto de vista, tema de Esplendor na Relva, o último filme que vi de Elia Kazan, e de longe o meu preferido (o “de longe” acentua uma certa provocação pois, apesar de gostos serem gostos, Esplendor na Relva é muitas vezes colocado numa segunda linha na cinematografia de Kazan). O confronto entre as expectativas que os pais têm e impõem aos filhos e a ambição destes por fazer valer a sua vontade, decidindo a sua vida tem consequências dramáticas. No dealbar da década de sessenta, a luta de gerações e a liberdade sexual no Cinema acompanhavam a mudança de costumes que se estava a iniciar. O filme revelou Warren Beatty e confirmou Natalie Wood em Hollywood.

Se a história terminasse aqui seria perfeita… mas há um lado negro na vida de Elia Kazan que teve um impacto directo na vida profissional (e pessoal) de companheiros seus…

Depois da II Guerra Mundial, com o início da Guerra Fria, o pânico anti-Comunista entrou nos EUA. No mundo artístico, actores, realizadores e argumentistas que eram associados a alguma forma de simpatia com o Partido Comunista perdiam o trabalho. E se os guionistas conseguiam continuar a sua actividade sob identidade falsa, os actores e realizadores não tinham outro destino que não o desemprego. A época ficou conhecida como a “Caça às Bruxas”.

Em 1952, Elia Kazan testemunhou perante o Comité de Actividades Antiamericanas do senador McCarthy onde denunciou colegas de profissão. Quase tão grave como a delação foi a confirmação, mais tarde, de que não se havia arrependido do que tinha feito!

‘Os 10 de Hollywood’, riscados do estrelato, inscritos na lista negra, o grupo incluía nomes como Edward Dmytryk ou Dalton Trumbo.

Na cerimónia de entrega dos Óscares de 1999, a Academia decidiu homenagear o realizador causando uma enorme controvérsia que dividiu o mundo do Cinema. Alguns actores e realizadores que assistam à cerimónia permaneceram sentados sem aplaudir mas outros, como Warren Beatty, aplaudiram de pé. Uns defendiam que alguém que denuncia companheiros seus não merece um reconhecimento, ainda que artístico; outros argumentavam que a Academia estava a premiar o trabalho de um grande realizador e não uma atitude, por mais condenável que ela fosse.

A sombra que cobre a crítica ideológica varia de acordo com o país ou a região da Terra: há lugares cuja maioria da população tem o dedo leve para criticar uma atitude lamentável se ela partir de uma personalidade conotada com um espectro político mas não tem igual critério se igual atitude tivesse partido de uma individualidade associada à ideologia contrária.

O conflito que me invade de cada vez que penso no reconhecimento de Kazan já pendeu para ambos os lados. Houve momentos em que fui favorável à entrega do Óscares honorário, inclusivamente em 1999 quando assistia à cerimónia em directo: ter o privilégio de poder experienciar obras tão magníficas como Esplendor na Relva, Um Eléctrico Chamado Desejo ou Há Lodo no Cais e constatar que tamanha criação fica órfã de um reconhecimento maior por causa de uma atitude que nada tinha a ver com as mesmas (obras), indignava-me. Noutros momentos, a fronteira entre vida profissional e pessoal não se desenhava tão nítida no modo como eu a via: Elia Kazan denunciou colegas de profissão e reconhecer profissionalmente alguém que não só afasta a concorrência como não sente remorsos por ter lançado alguns companheiros no desemprego é algo que é difícil de engolir.

Ainda que não se esteja a avaliar o carácter de um homem, mas tão-somente a sua importância para a história do Cinema (e ela é inegável, independentemente de gostarmos ou não das suas atitudes), o conflito entre o reconhecimento e a ética testa sempre os nossos valores mas também não pode ser retirado da época que vivemos. Alguém acredita que a Academia premiaria hoje Roman Polanski com o Óscar de Melhor Realizador como aconteceu em 2002, ainda que nenhum dado novo tenha surgido desde então a respeito do caso de abuso sexual que tem pendente nos Estados Unidos, depois da visibilidade que as situações de assédio e agressão sexual ganharam nos últimos anos? O único factor que mudou nestes dezassete anos foi a época (ou os costumes), e isso não deve ser desprezado na avaliação que fazemos do que nos rodeia. Podemos tentar abstrair-nos (e não é fácil) e compreender se a mudança de costumes é estrutural e um marco de evolução civilizacional ou algo passageiro, fruto da política ou do moralismo do momento.

Sem branquear ou aligeirar a questão, fica o testemunho registado nos cinco filmes mencionados como a maior contribuição que Elia Kazan ironicamente deu, através da sua arte, para nos mostrar com mestria aquilo em que não esteve à altura na vida fora da tela.

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