Diário de Bordo

11 de maio, Sábado

Abastecemos 70 mil litros de água potável, metade do suprimento planeado. Soldamos barreiras anti-artilharia em quatro pontos da superestrutura, chapa de aço com 16mm de espessura, trabalho realizado por mão-de-obra local. Partilhamos informação logística com voluntários dos Médicos Sem Fronteiras: o como e o quem para movimentar pessoas e bens até à Ilha do Ibo. Às 17 horas, soltamos amarras e deixamos a baía. Mar-alto, deserto movediço, luar de meia-lua, constelações nítidas. Clinton O’Dell, companheiro de camarata, dorme de luz acesa, mas não ressona.

13 de maio, Segunda-Feira

Mar bravo. Uma vez que o contingente militar está atrasado, decidimos regressar a Pemba. Iniciámos viagem às 21 horas da noite passada e estamos em trânsito, com chegada prevista para a meia-noite de hoje. A tripulação está desmoralizada, mareada, cansada das noites consecutivas de viagem. Tremor de mar. Ontem tudo estremecia.

14 de maio, Terça-Feira

Em reunião, discutimos as regras de empenhamento. São-me atribuídos colete à prova de bala e capacete militar. A mim, ao capitão e ao imediato, os últimos a abandonar a ponte de comando em caso de ataque, sob as ordens de Clinton, médico de combate com duas campanhas no Iraque e duas no Afeganistão, outro veterano de guerra com quem me cruzo no caminho.

17 de maio, Sexta-Feira

Continuamos ancorados à espera dos militares que, vindos de Maputo, continuam na estrada. Já sabemos que são sete, dos quais elegeremos quatro. Dezanove horas e trinta, já a noite vai avançada. Ancorado na baía, o navio oscila subtilmente. Cortam-se cabeças em Macomia, cem quilómetros mais a norte.

26 de maio, Domingo

Por volta das três e trinta desta madrugada, sou chamado pelo walkie-talkie. O fuzileiro Quito reporta a aproximação de uma embarcação ao navio. Subo à ponte e por essa altura já a embarcação se afasta em direcção à costa, deixando-nos para trás a estibordo. O sargento Donaldo Bila classifica a embarcação como sendo de pesca e inofensiva. Quito discorda, já que a embarcação é de fibra-de-vidro, distinta de um barco de pesca artesanal. Acordo depois das 8, o despertar mais tardio desde que embarquei. Dia tranquilo, corrida no convés, seguida de ginásio. Prossegue a reparação do equipamento. Estima-se um teste de funcionalidade para amanhã de manhã. Avistam-se queimadas na costa, na mata para além das dunas. Quito sugere que são aldeias atacadas pelos meliantes. O sargento contradi-lo, argumentando que tem homens estacionados ao longo da costa, pelo que seria informado em caso de incidente. Um dos mecânicos do navio, filipino de nome Leonardo, reporta ter visto o fantasma de uma mulher caucasiana, sem rosto, numa ocasião em que passou a noite no hotel designado em terra para a troca de tripulação.

27 de maio, Segunda-feira

Quito conta-me que são whites os que recrutam jovens desempregados para o terrorismo. Conta-me que fez parte de uma missão na ilha de Safo, ao largo da fronteira com a Tanzânia, para onde o seu pelotão foi destacado para levar os meliantes capturados e atirá-los vivos de um penhasco (‘para poupar munições,’ explicar-me-á Clinton quando partilho a história). Quito conta-me da procissão funerária de mulheres enlutadas que afinal velavam um caixão carregado de granadas. Conta-me de pinturas faciais cruciformes, de remédios de imunidade contra balas e leopardos. Conta como o pelotão foi deixado à sua sorte na ilha, os soldados forçados a caçar facocero para comer. Mostra-me fotografias do animal selvagem trinchado para assar na praia, carne viva a contrastar com a areia branca. Seis meses durou essa campanha.

29 de maio, Quarta-feira

Clinton O’Dell mostra-me uma colecção de fotografias: dezoito meses no Iraque, dezoito no Afeganistão. As mãos tremem-lhe, ouço-o falar enquanto dorme. Every single day, desabafa, referindo-se ao som alucinante da artilharia. Mostra-me o que os explosivos fazem ao corpo de um bombista suicida: matéria encefálica a apodrecer na poeira da estrada, uma cabeça virada do avesso, membros amputados; corpos partidos, despedaçados, esventrados, espapaçados. Mostra-me um vídeo de homenagem à sua companhia da SAS – Special Air Service – com música dos Evanescence e epílogo a preto e branco com retratos dos que não sobreviveram. Um disco duro de cadáveres. Meia-idade, divorciado, medicado, saudosista de um tempo que ficou para trás e que traz consigo nas memórias de guerra e na gaguez.

31 de maio, Sexta-feira

Sem que ninguém o tivesse nomeado, David, o paramédico do Louisiana, decide assumir funções de guarda, alertando para toda e qualquer embarcação que se aproxime; qualquer esquife pobre, de vela rota, deve manter-se ao largo do nosso navio ou, caso contrário, será considerado uma ameaça. Anda excitado com a nova função e fotografa com o iphone os barcos, fotografias que partilha em relatórios electrónicos que distribui à noite. Irrita-me esta histeria de cão de guarda que o redneck demonstra. E o problema é que contagia. Uma grande embarcação tradicional vem desgovernada em direcção à nossa proa. Eu aceno, acenam de volta. Espantados pela dimensão do nosso navio e sonda de perfuração protuberante na popa, os pescadores sinalizam, mostrando que se rompeu um cabo de vela. Uma lancha de nome “Grande Momento I” atravessa de oeste para este até parar na boca da baía onde permanece entre duas a três horas. Whites, identifica Quito. Mais a sul, outra vez no distrito de Macomia, mataram dezasseis pessoas numa emboscada. Estou cansado. Não pedi a ninguém para ser especialista. Abram os olhos, reparem onde estão e deixem os pescadores em paz. Quando nos quiserem fazer a folha hão-de vir em força e pela calada.

2 de junho, Domingo

Um navio de duas mil toneladas; dez contentores de vinte pés; cento e trinta e oito toneladas métricas de equipamento; quarenta e quatro tripulantes; catorze mil litros de gasóleo marítimo consumidos por dia. Um sistema mecânico-hidráulico-eléctrico-eletrónico de perfuração e telemetria, telecomandado por um mouse na palma da mão de um serralheiro neozelandês, numa praia tropical onde mulheres e crianças pescam moluscos no recife durante a baixa-mar. O sal e o sol e a vida primordial. Ocorre-me que é dia de reclamar o meu salário.

7 de junho, Sexta-feira

Quatro canoas, cada uma com dois pescadores a bordo a lançarem uma rede de arrasto que um mergulhador  alisa como um lençol sobre a cama. Acontece que estão próximos da nossa popa e que, com a corrente e o vento, mais próximos irão ficar, correndo o risco de entrarem na zona de sucção das hélices. Somos advertidos pelo sargento. Subimos à ponte e fazemos soar a buzina. Lá em baixo no mar, os homens dão conta do navio gigante que os assombra e sobressaltam-se, reagindo como quem tivesse culpa. Recolhem as redes precipitados e remam para nosso estibordo. O sargento havia empunhado a Kalashnikov e os pescadores obedeceram.

9 de junho, Domingo

O Estado Islâmico reivindicou o ataque perpetrado a 28 de maio no distrito de Macomia do qual resultaram 16 casualidades, incluindo três soldados, e o roubo de um lança-granadas. O sargento Bila garante que o RPG roubado tem um alcance máximo de 250 metros, o que deixa o nosso navio a salvo de um disparo desde a costa, mas sugere que para uma defesa efectiva também o navio deveria estar armado de uma metralhadora e de um lança-granadas. O sargento relata que recentemente o seu quartel foi atacado por um RPG, ataque a que se seguiu uma troca de fogo que durou duas horas. Quito refere que os terroristas têm muito mais armamento do que se julga. Entretanto, o Capitão e o segundo-oficial têm receio de pernoitar no hotel onde os colegas reportaram fenómenos paranormais: o tal fantasma da senhora branca, o inexplicável som do amachucar de uma garrafa de plástico, uma videochamada recebida por uma esposa nas Filipinas, cujo emissor, o marido a pernoitar nesse hotel, jura nunca ter emitido.

15 de junho, Sábado

Viramos a proa para o vento alísio que sopra de sul, su-sudeste.

Aula de primeiros-socorros, medicina de combate: estancar hemorragias por meio de pressão e/ou torniquete; sucking chest wound: perfuração da cavidade torácica em que haja circulação de ar: usar uma luva descartável ou até mesmo o celofane de um maço de tabaco para criar vácuo na cavidade.

17 de junho, Segunda-feira

Zarpamos da baía e entramos em mar aberto a uma velocidade de sete nós, lentos como uma nave-mãe. Esperam-se vagas de três metros, vento repugnante com rajadas a rondar os 30 nós, 21 horas de trânsito.

A epifania passou ao largo, de este para oeste, de um istmo ao outro da baía, a bordo de um barco artesanal de madeira talhada e vela de pano, tripulado por quatro pescadores esfarrapados. Os marinheiros de convés aplicam uma mão de primário nos corrimões, nos degraus, nas escotilhas: a salsugem corrói, se se descuida a manutenção. Vou escrever lá para fora, à luz da lua. Os drillers nos telecomandos, os geólogos no laboratório, os mecânicos na sala das máquinas. O rumor constante dos motores, o subtil restolhar das ondas negras, as poucas luzes de Palma, a sombra que escurece as páginas deste caderno e se vai moldar nos costados do navio e nos cabeços de amarração sobre os quais estico as pernas. Que sossego… sem enredo, sem sobressalto, sem fábula, só mar, ténue ondulação e rotina. Alguém me deseja um bom regresso ao local que por ora chamo casa.

18 de junho, Terça-feira

Viajamos a uma velocidade de nove nós em águas de mil e trezentos metros de profundidade, algures a norte da ilha de Matemo, no arquipélago das Quirimbas. Restam cento e cinquenta milhas náuticas e a hora de chegada prevista, depois de ajustada a velocidade, são as cinco da madrugada. Agora que a perfuração terminou, reinam a boa disposição e o sentimento de missão cumprida. A máquina de café tritura, passa de mão em mão o tabuleiro das bolachas. O chefe-das-máquinas retira a banda da testa, declara estar tudo sob controle, e desabafa que já só pensa em chegar a casa e à mulher. Escrevo na ponte de comando, à luz de um candeeiro. Estamos apenas eu e Angelito, segundo-oficial. Um a um, Angelito apaga os candeeiros. Quando eu me levantar daqui, virá apagar este também. A navegação requer escuridão. Traça-se a rota e conquanto não se veja nada, estará tudo bem.

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