O que é a beleza? Talvez seja uma das perguntas mais silenciosas que carregamos — daquelas que não se dizem em voz alta, mas criam eco de cada vez que passamos diante de um espelho. Ao contrário do amor, que muitos tentam definir em palavras doces ou ardentes, a beleza parece ser um projeto, um cálculo de calorias, quilos, centímetros e tamanhos de trapos.
Durante muito tempo, a beleza era o que víamos nos rostos dos nossos avós, nas rugas que se acumulavam debaixo dos olhos, nos lábios finos das nossas mães. Não era tanto a estética, era mais o encanto. Havia beleza que não pedia desculpas por existir. E a idade era bela. Como nas Velhas árvores, de Olavo Bilac:
«Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas…»
(…)
Hoje, a beleza virou escultura, post com glamour e anúncio de cosmético. Um corpo bronzeado, tonificado, uma pele sem poros, dentes brancos, cinturas invisíveis, pernas delgadas. É a beleza que exige. Que pesa. Que exclui.
Clarice Lispector, em A Hora da Estrela, desmonta uma perceção e revela uma imagem dolorosamente familiar: o momento em que o espelho nos devolve rejeição.
«Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem algum. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem.»
A hora da estrela (p.33)
Clarice — com o seu dom de traduzir a alma — aponta a contradição de muitos corpos hoje: escondem-se para serem aceites, transformam-se para serem amados. O reflexo que devolvemos ao mundo, por vezes, não nos pertence.
A beleza virou uma promessa de felicidade. Mas é uma promessa que falha. Porque não aceita variações, cansaços ou mudanças. Ela é sedenta de juventude eterna, dos retoques constantes, dos filtros perfeitos. É uma beleza que não se sustenta na vida real — onde a pele enruga, o peito desce, a barriga cresce e os olhos se cansam.
Vivemos entre a alma que quer mostrar-se e o corpo que nos ensinaram a esconder. Porque já não cabe no padrão. Porque engordou. Porque envelheceu. Porque tem marcas.
Mas talvez seja hora de devolver à beleza o seu verdadeiro rosto. Aquele que também chora, que também tem manchas, que muda com as estações. Talvez possamos voltar a ver beleza naquilo que não se mostra, mas se sente. Na forma como alguém escuta, na ruga de tanto sorrir, nas pálpebras descaídas.
«Tenho, pra fascinar o meu dócil amante,
Espelhos de cristal, que tornaram deslumbrante
A própria imperfeição. — Os meus olhos ardentes!»
A beleza, de Charles Baudelaire
Somos perfeitos no inteiro da imperfeição. A beleza — a de verdade — não se fotografa. Vive. Transborda.
«Digo do corpo
o uso
dos meus dias
a alegria do corpo
sem disfarce.»
Corpo, de Maria Teresa Horta
Termino o artigo com uma pergunta simples — ou não: e se estivéssemos mais preocupados em viver bem o verão do que em ter um corpo de verão?
A beleza está em olharmo-nos com olhos menos julgadores e mais curiosos. Em existirmos, mesmo que o reflexo não siga o padrão.
Assim, como escreveu Clarice Lispector, n’ A hora da Estrela:
«Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.»
E talvez continuar a escrever sobre o corpo, a alma, a beleza — seja o que de mais belo possamos fazer.
A beleza invisível aos olhos é a que busca a cura num banho de sol, uma massagem ao pisar a areia, energia nova ao contacto com a água e tantas formas de viver o verão em grande. A beleza está na entrega à imperfeição, na contemplação do presente. Que saibamos aproveitar a doce e quente estação com tudo que nos apresenta. Belo texto, parabéns.